Reprodução/ Web |
Em Parnaíba, a rua que passa ao lado da Santa Casa de Misericórdia, chama-se ‘Coronel Pacífico.’ À esquina, em um quadro feito de tinta escura, lia-se, quando ali cheguei em 1894, e ainda se lia em 1903, esse dístico, em tinta branca. No prédio enorme, que toma todo um quarteirão, em que funcionam hoje os serviços da caridade urbana, residia, há sessenta ou setenta anos, esse homem poderoso.
Membro, dos mais proeminentes, da aristocracia da província, possuía numerosos escravos e grandes terras. O seu gado mugia em nove comarcas do sertão e os seus negros enchiam toda a praça fronteira, à hora da bênção a seu senhor.
Um orgulho fundo enchia-lhe, por isso, o largo peito brasileiro, e era com displicência altiva que passava a mão pela barba grisalha e espalhada que, aberta em leque, lhe cobria o coração.
Das suas escravas, uma houve, todavia, que conseguira o milagre da alforria pelo trabalho. Rezando e penando, juntando o vintém ao vintém, comprara, primeiro, a liberdade, e, em seguida, para pagar a Deus a bênção da liberdade, adquirira, um caixão de defunto.
Era resultado de uma promessa que fizera. Prometera a Deus que, se um dia fosse livre, ofereceria à Igreja do Rosário um caixão enfeitado como o dos brancos para conduzir os escravos ao cemitério.
Que eles tivessem, na morte, uma igualdade que não haviam conseguido em vida. O caixão levá-los-ia a enterrar e voltaria para a igreja, à espera de outro viajante da Eternidade. A caminho do outro mundo, naquele esquife agaloado, que substituiria a rede humilde e suja, o escravo teria a ilusão póstuma de que morrera redimido. E Tereza, a velha preta, era feliz e rezava consolada, porque dera esse último sonho de liberdade aos seus irmãos.
O negro, era, porém, antigamente, não só animal de trabalho como objeto de ridículo. Ao passar o caixão de um branco, os transeuntes se calavam, compungidos, murmurando um ‘Deus te leve’, com a pena e o terror no coração.
Se era, porém o caixão de Tereza que atravessava as ruas, aos ombros de quatro negros que levavam a enterrar um companheiro, os brancos paravam pilheriando, e as senhoras corriam para a janela, sorrindo, numa zombaria alegre da última vaidade daqueles homens de cor. E quem melhor sorria, do alto do seu orgulho branco e de homem rico, era o coronel Pacífico, antigo senhor da Tereza, diante de cuja casa, no outro lado da praça, para que ele sorrisse mais, ficava o cemitério.
Um dia, partiu o coronel, a cavalo, a visitar as suas numerosas fazendas do sertão. No segundo dia de viagem, ao apear-se em uma das povoações das margens do Parnaíba, tem uma síncope, e morre de repente. A população rodeia lhe o corpo, compadecida e preocupada. Sepultá-lo no cemitério local, cercado de varas e esburacado pelos tatus, é desrespeito a homem tão poderoso. Amarrar o cadáver à sela de um cavalo a fim de conduzi-lo, por terra, para Parnaíba, é missão impiedosa e difícil, pelas 24 horas de marcha, que são necessárias.
E como o caminho mais cômodo é o rio, resolvem os moradores colocar o corpo sobre uma taboa sobre os bancos de uma canoa, e fazê-la descer, à força de remos, a toda velocidade, rumo de Parnaíba. Se os remadores não descansarem, remando dia e noite, lá chegarão em vinte horas. Fez-se isso, e a canoa partiu.
Animados pela esperança de uma larga recompensa, os tripulantes da embarcação fúnebre fazem-na voar pelas faces barrentas do rio. Horas seguidas, os remos roncam ao ritmo surdo, deixando para trás os redemoinhos gorgolejantes das águas. Ao anoitecer, param para repousar um instante, no porto de um povoado. Os remadores encaminham-se para uma taberna e põem-se a beber. A meia noite, embriagados todos, voltam para a canoa, e na exaltação do álcool, resolvem compensar as horas perdidas remando com maior fúria. Como tenham trazido para bordo um garrafão de aguardente, remam e bebem. E remam e bebem ainda quando, á primeira claridade do dia, um deles solta um grito:
- Cadê o defunto?
O morto havia realmente desaparecido. Com o impulso da canoa para a frente, o corpo se havia deslocado no rumo da popa sem leme, e, por aí, caído n’água... A embarcação faz, porém, meia volta e, em breve, os seus homens encontram o cadáver que descia na correnteza. Reembarcado, começa, de novo, a corrida vertiginosa da canoa, rio abaixo. Até que se ouve outro grito:
- Pega o homem!
Era o corpo do coronel que havia, de novo, caído n’água. E como, ao reavê-lo, os remadores, completamente bêbados, não o punham convenientemente sobre a tábua, tantas vezes o repescassem quantas ele voltava à água, forçando os tripulantes ora a mergulhar, ora a nadar, para que a embarcação não chegasse a Parnaíba sem a sua carga fúnebre. Da última vez, para não interromperem mais a viagem, e, mesmo porque o cadáver já tivesse entrado em putrefação, os canoeiros deliberaram:
- Deixe o homem na água mesmo!
E, amarrando o defunto pelo pé, prendem a corda à popa da canoa, e rebocam-no rio abaixo, rumo de Parnaíba.
Ao chegarem ali, o corpo, em franca decomposição, foi arrastado para a praia. O mal cheiro, espalhado, e a notícia da ocorrência fazem correr para o porto metade da população. A família do morto, surpreendida pelo acontecimento que a cobre de dor e de luto, movimenta-se. É preciso, quanto antes, dar sepultura aqueles despojos macabros, que jazem sobre a areia, à margem do rio. Os marceneiros, chamados, declaram que só no dia seguinte poderão dar pronto um caixão.
E é quando alguém lembra...
- E o caixão da Tereza?
A ideia é aceita, embora com constrangimento. Vem o caixão, que se achava na sacristia do Rosário. O caixão, promessa da negra velha.
E o corpo do coronel Pacífico atravessou a cidade, entre o dobre funerário dos sinos das duas igrejas de Parnaíba, no caixão de enterrar escravos, aos ombros de quatro escravos, que tapavam o nariz...
Humberto de Campos
Edição: Jornal da Parnaíba
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente essa postagem
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.