TABULEIROS LITORÂNEOS, DNOCS, VANGUARDA E A INSENSATEZ ESTATAL
A ideia de montar um perímetro público de irrigação no litoral piauiense foi formatada no final da década de 70, nos últimos lampejos do “milagre econômico” e no rescaldo da ditadura militar. A concepção vigente de um Estado intervencionista se cristalizou com a formação dos ditos “Distritos de Irrigação”, uma associação de irrigantes com participação em sua diretoria do DNOCS, com base conceitual do modelo de “co-gestão”, onde os usuários da infraestrutura de uso comum podiam debater e decidir qualquer tema, desde que tivessem a concordância do representante do órgão estatal, ou seja, era o “braço forte do Estado interventor”. Esse modelo arcaico e obsoleto perdura até hoje na maior parte dos 36 perímetros irrigados do DNOCS e atribuo a ele a maior parte do caos em que vivem mergulhados esses perímetros, em especial os mais antigos.
Contra a vontade do DNOCS, os irrigantes dos Tabuleiros Litorâneos em 2001 partiram para diminuir o “poder de fogo do DNOCS”, deixando-lhe apenas o poder de veto sobre algumas decisões relacionadas à preservação do patrimônio público. O coletivo, naquela época, de forma vanguardista e inovadora, entendeu que nada seria mais justo que os protagonistas da gestão tivessem o direito de decidir seus destinos, o que é correto à luz de uma democracia moderna como a que vivemos. Essa atitude imputou nesse coletivo a ideia de que “Yes, we can” (Sim, nós podemos), imortalizada pelo atual presidente dos EUA, Barack Obama. Conduzido por esse elemento aglutinador de um coletivo de irrigantes extremamente heterogêneo, os Tabuleiros Litorâneos rompeu com a letargia de uma estrutura de 150 milhões de dólares desembolsados pelo Estado brasileiro, com todos os elementos de ineficiência econômica que conhecemos.
Os Tabuleiros Litorâneos nesses últimos dez anos manteve essa postura de vanguarda. Com apenas 25% da área da primeira etapa em produção, a quebra do paradigma da co-gestão se seguiu a outro que ainda causa descrença aos mais desavisados: o modelo de produção orgânica. Ancorado inicialmente por um contrato de fornecimento de acerola para uma multinacional (a Nutrilite Amway do Brasil), hoje já possui mais de dez culturas com certificação orgânica. A coragem em adotar esse modelo, contra toda a lógica intrínseca ao Estado na personalidade do DNOCS, permeou vários outros perímetros públicos de irrigação e hoje existem experiências exitosas em pelo menos seis outros perímetros. Essa expetise foi construída a duras penas, muito sacrifício pessoal, muita persistência e determinação. Superaram, venceram os irrigantes, pois o modelo se mostrou sustentável, social, ambiental e econômico.
Foi também o primeiro perímetro público de irrigação do Piauí a ter a plena regularização fundiária, também por iniciativa dos irrigantes. Essa regularização buscava basicamente as condições de acesso ao crédito bancário para dar suporte aos altos investimentos necessários à implantação do novo modelo. Esse acesso não aconteceu a contento, nem no tempo, na quantidade e nem na forma demandada. Atualmente temos uma média de financiamento liberado de R$ 2.500,00 por hectare, porém nossa necessidade é de, no mínimo, R$ 20.000,00. Consequentemente, o resultado é o reinvestimento integral do fluxo de caixa para manter a produção. O investimento já realizado pelos irrigantes varia em torno de 12,5 milhões de reais. Geramos 600 postos de trabalho e injetamos mensalmente mais de 400 mil reais na economia do Piauí, o que se multiplica por 1,5 vezes por se tratar de capital de origem no setor produtivo. São mais de 2 milhões de reais pagos de energia elétrica, 1,2 milhões pagos de K-2, deixamos de jogar pelo menos 20 mil litros de agrotóxicos no Delta do Parnaíba e proporcionamos trabalho decente para centenas de colaboradores. Há doze anos que os irrigantes que aqui se instalaram carregam nas costas uma ociosidade média de 80% da área da primeira etapa, ocasionada pela incapacidade da burocracia em dar celeridade à ocupação desses lotes com empreendimentos produtivos, em contraponto a 96% de taxa de cultivo dos lotes de pequenos produtores. Isso tudo foi feito contra a lógica vigente, citam-se aí as recomendações técnicas de produção, o entendimento dos agentes financeiros (Banco do Nordeste e Banco do Brasil), a minoria de irrigantes resistentes, as linhas de pesquisas predominantes, o conhecimento da academia, o planejamento do DNOCS e do Ministério da Integração e a demanda do mercado local.
Isso tudo já passou e hoje todos são favoráveis, colaboradores, participativos de alguma forma, todos estão de bem com a opinião pública, estão com a sensação do dever cumprido, do benfazejo. Só um personagem nessa história está “asmático”: o irrigante que optou pelo modo de produção orgânica, que está pagando energia, k-2, parcelas de financiamento bancário tardio e insuficiente e ainda reinvestindo o que pode para manter o nível de produtividade. Para esse paciente asmático lhe é oferecido como presente de natal uma nuvem de poeira trazendo um envelope e um título de cobrança com a bagatela das primeiras parcelas anuais do lote: nada mais, nada menos que R$ 2.092,13 por hectare. São exatamente R$ 2.092,13 por hectare de parcelas vencendo no próximo mês de dezembro/11.
Essa insensatez estatal, amparada pela legalidade de contratos unilaterais assinados entre irrigante e DNOCS à época, no afã de fazer as coisas acontecerem, inevitavelmente vai ser a sentença de morte das conquistas já alcançadas, vai inviabilizar o que já está em produção, vai comprometer a definitiva ocupação da primeira etapa e inviabilizar a atração de empreendedores sérios para a segunda etapa, em fase de conclusão. Citando apenas o conhecimento acumulado pelos irrigantes, se fosse contratar consultorias, seguramente já daria muito mais que o que estão lhes cobrando. O DNOCS, por exemplo, contratou por 12 milhões de reais esse ano o Instituto Interamericano de Cooperação Agrícola - IICA, que se imagina ser necessário. Mas o Distrito precisa receber um tratamento diferenciado sim, pois caso fosse fazer a métrica dessa relação, há um vultoso saldo positivo a seu favor.
O que queremos? Fôlego. Que seja suspensa a cobrança dessas parcelas e que se forme um grupo de estudos com a participação dos irrigantes para definir uma forma de pagamento exeqüível, adequando-o à nossa capacidade de pagamento, sob pena de retroagirmos pelo menos doze anos.
Josenilto Lacerda Vasconcelos
Irrigante nos Tabuleiros Litorâneos