|
Santa Maria - RS |
Nós já sabíamos que a tragédia de Santa Maria iria acontecer. Nós já sabíamos que choraríamos centenas de mortes, que ficaríamos chocados diante dos aparelhos de TV, ouvindo o rádio, buscando mais informações nas redes sociais na Internet. Nós já sabíamos que passaríamos dias falando, chocados, sobre a tragédia, comentando, analisando, opinando.
Nós já sabíamos quem seriam os culpados. Nós já sabíamos que faltaria precaução, que a segurança seria analisada de forma superficial e burocrática. Nós já sabíamos que ninguém se perguntaria antes “e se acontecer um acidente, estaremos preparados? Teremos como salvar as vidas?” Nós já sabíamos que ninguém pensaria nas consequências, coletiva ou individualmente. Nós já sabíamos que ninguém examinaria seriamente os riscos envolvidos. Nós já sabíamos que todos tomariam decisões insensatas, assumiriam riscos inaceitáveis, deixariam de olhar para frente e para as pessoas.
Nós já sabíamos que continuaríamos desperdiçando vidas jovens, recursos vitais e criativos críticos para o nosso futuro. Nós já sabíamos que ninguém levaria em consideração o valor humano e social daquelas quase duas mil pessoas, como grupo e como indivíduos. Nós já sabíamos que o espírito fraternal, a solidariedade, a identificação de cada um de nós com nossos semelhantes, só se manifestariam, como choro e revolta, depois da tragédia acontecida.
Nós já sabíamos que aceitaríamos como aceitáveis instalações inaceitáveis para eventos públicos. Nós já sabíamos que ninguém examinaria o conjunto e a interação entre suas partes: risco de incêndio; uso em excesso de material inflamável e tóxico, capaz de exalar vapores fatais em grande quantidade e pouco tempo; falta de sistemas adequados e bem dimensionados de exaustão do ar; falta de planejamento de segurança para a circulação das pessoas em circunstâncias extremas (são muitas as circunstâncias extremas muito prováveis, em eventos de massa, inclusive pânico sem razão forte. No caso o pânico era real e a circunstância, fatal.); superlotação, a mesma que vemos nos ônibus, metrôs e trens do país e que, em um acidente, aumenta o número de fatalidades inevitavelmente; pessoal de segurança treinado para a finalidade errada, não para assegurar a segurança das pessoas.
Nós já sabíamos que tudo seria tratado de forma burocrática e com descuido e desmazelo, antes da tragédia. Nós já sabíamos que ninguém assumiria a responsabilidade pela tragédia. Nós já sabíamos que enterraríamos nossos mortos em choque e com raiva.
Nós já sabemos que daqui a algumas semanas esqueceremos nossos mortos, talvez porque estaremos chorando outros mortos nossas também, vítimas de outras tragédias que já sabemos que acontecerão. Ou talvez porque nenhuma tragédia aconteça no curto prazo, sabemos que esqueceremos tudo até a próxima, que sabemos que virá. Voltaremos à nossa rotina, à nossa vida diária, que não é fácil para a maioria de nós. Ela nos absorverá, até a próxima tragédia. Nossa indignação se esvairá como aquelas estrelinhas de bolo de aniversário. Resistentes ao sopro, mas não ao tempo breve da matéria que as anima a queimar. E esperaremos pela próxima tragédia.
Nós já sabíamos que a tragédia de Santa Maria aconteceria. Só não sabíamos que seria em Santa Maria, na boate Kiss, na madrugada do último domingo. Pusemos a culpa nos responsáveis diretos e todos tivemos dificuldade de dormir no dia seguinte. Mas não nos perguntamos sinceramente, não consultamos nossos corações para saber porque nossa indignação dura tão pouco tempo e não se manifesta de forma mais efetiva. Não nos olhamos no espelho, ao lavar o rosto e escovar os dentes para ir correndo ler os jornais do dia, ver e ouvir o noticiário que já sabíamos seria dominado pela tragédia e não nos perguntamos por que continuarmos a tolerar o intolerável por tanto tempo. As tragédias têm sempre causas técnicas e humanas. Mas são tragédias somente por causa do encontro entre a ocorrência e o comportamento humano. Tragédia nunca é destino, fatalidade, acaso. Tragédia é sempre o resultado das escolhas que fazemos.
Sérgio Abranches, publicado na Ecopolítica, 28 janeiro, 2013