Prof. Dr. Geraldo Filho
O mundo se chocou no
primeiro semestre desse ano com o “Brexit”, acrônimo para a saída da
Grã-Bretanha da União Europeia (Britain + exit) por meio de plebiscito!
Multiplicam-se análises atônitas sobre as possíveis causas que justifiquem a
decisão da maioria do povo britânico. Elencam-se razões econômicas; políticas;
de identidade nacional e religiosa, motivadas pela chegada de imigrantes,
sobretudo muçulmanos... Porém, o que se pode dizer até o momento, com certeza,
é que ninguém conseguiu esgotar as possibilidades imagináveis.
É bom lembrar –
particularmente para os que acreditam que a história obedece a leis férreas,
como o determinismo da estrutura econômica ou de classes – que na raiz do
evento político aqui abordado encontra-se um cálculo tático mal elaborado. Ou
por excesso de confiança, que estimula a vaidade; ou por incontinência verbal,
além de miopia na avaliação do contexto político britânico e do mundo, o então
Primeiro-Ministro David Cameron prometeu nas últimas eleições para o parlamento
– visando à manutenção ou ampliação das cadeiras do Partido Conservador – que
faria, em 2016, consulta à população para decidir sobre a permanência ou a
saída da União Europeia.
Na verdade, nunca passou
pela cabeça de Cameron realizar o tal plebiscito! Confiante na boa situação
econômica do Reino Unido (portanto, a tese de Bill Clinton, de que é a economia
que sempre resolve uma eleição, pode ser relativizada!) ele cogitou que “dava
para empurrar com a barriga”, sem muito desgaste, essa história de consulta
popular, afinal foi só um arroubo de campanha, etc., e, em termos relativos, a
sociedade em geral estava bem!
O problema é que Cameron
esqueceu-se de que “era inglês” e, o pior, no seu próprio país! Fosse aqui pelo
Brasil, no qual promessas políticas de campanha não passam disso mesmo,
promessas, Cameron não teria protagonizado o vexame pelo qual passou, e continuaria
como premiê. Resultado, pressões de alas mais nacionalistas do Partido Conservador
e o oportunismo político do Partido Trabalhista (mirando o posto de Cameron)
forçaram o plebiscito e deu no que deu!
Impôs-se então a questão:
Como um país, cujos indicadores sociais e econômicos relativos a União Europeia
e ao mundo são positivos, além de gozar sólida estabilidade política, pode
optar por um mergulho na turbulência da indefinição?
A esta pergunta, muitas
respostas! No entanto, sem excluir aquelas que já foram dadas ou estão sendo
preparadas gostaria de chamar a atenção para possíveis explicações que
comumente são esquecidas na abordagem de fenômenos de natureza sociológica e
política, não obstante sejam parte inerente e fundamental da natureza das
sociedades.
O que se tem como óbvio é
que quem votou pela saída foram gerações mais velhas de britânicos, que se
concentram fora das grandes cidades cosmopolitas do Reino (como Londres) e são
saudosistas do velho estado de bem-estar social (“welfare state”) que se
estabeleceu depois da 2ª Guerra e durou até Margareth Thatcher. As bandeiras de
campanha desse segmento social são nacionalistas e tendem à xenofobia, que se
manifesta comumente mediante a crítica de que nada o Reino Unido ganhou ao
integrar-se a União Europeia, pelo contrário, só perdeu, com os nativos deixando
postos de trabalho para os imigrantes europeus que podiam circular livremente, com
os mesmos direitos de um cidadão britânico.
Por outro lado, quem
votou pela continuidade na União Europeia foram gerações mais novas e
habitantes dos grandes centros urbanos, que estavam na infância “quando”, ou
nasceram “depois”, de que Thatcher começou a desmontar o estado social. Só para
lembrar, estado de bem-estar social se caracteriza por ser grande, com empresas
estatais atuando fortemente na economia e enormes burocracias criando e
gerenciando políticas públicas. O que há em comum a todos é que em nome da
justiça social entregam ineficiência e corrupção, cujo exemplo clássico atual é
o Brasil.
Essas gerações mais novas
referidas acima se caracterizam por uma mentalidade cosmopolita,
integracionista, refletindo a globalização dos anos 90 e século XXI, devido à
complementaridade das grandes cadeias produtivas mundiais (que interligam num
mesmo sistema de produção, circulação e consumo um criador de frango no interior
do Brasil a um assador de frango de esquina numa cidade da China ou da Índia,
para ficar num exemplo simples); e consequência também da revolução dos
sistemas de informação, ocorrida no mesmo período, que possibilitou a
unificação do mercado financeiro global (para o bem ou para o mal, pois o mau
humor na Bolsa de Valores no Japão, por causa de uma crise interna, afeta todo
o sistema) e a homogeneidade dos gostos e comportamentos a partir da estética
ocidental (para horror dos empedernidos muçulmanos, se deixar, seus jovens
aderem fácil aos ritmos dançantes, à ciência, à moda, à culinária, à
literatura, ao cinema e ao teatro produzido no eixo anglo-americano-franco-ítalo-germânico).
O que significam,
portanto, estes dois comportamentos votantes? A meu ver refletem duas forças
poderosas, cujas raízes estão para além das explicações convencionais de
natureza sociológica e política, que agem no subterrâneo das sociedades e
moldam as instituições humanas em geral. A primeira expressa um dos instintos
básicos da natureza animal da qual o homem faz parte, e que ajudou a modelar a
seleção natural das espécies desde que existe vida: a seleção natural
adaptativa de genes, parentesco ou grupo (seleção multiníveis).
Nacionalismo e xenofobia
(aversão aos estrangeiros) são as duas faces de uma mesma moeda, representam
estender para a nação (grupo) os comportamentos instintivos básicos do núcleo
familiar (genes) e dos seus componentes (parentes), guiados pela necessidade de
maximizar as chances de nutrição, proteção e reprodução. Quaisquer indivíduos
ou situações que sejam identificadas como supostas ameaças a estes imperativos
fundamentais de sobrevivência serão considerados inimigos e passíveis de ataque
ou preconceito.
As emoções como a raiva e
o medo provavelmente estão por trás do sentimento nacionalista e xenófobo,
principalmente quando resultado da perda de empregos para imigrantes que
pressionam os salários para baixo e muitas vezes têm um bom preparo
educacional, igual ou superior aos nativos; perda de empregos porque empresas
nacionais mudam para outros países da União à procura de custos trabalhistas
mais baixos; ou porque resultam da perda da identidade nacional, ao veem pelas
ruas de suas cidades a multiplicação de comportamentos exóticos que nada têm a
ver com sua sociedade original, do tipo uma mulher andando de burca (veste
muçulmana que cobre todo o corpo) ou mesquitas sendo abertas (coisa impensável
se uma igreja católica ou protestante tentasse se estabelecer no Irã!).
O sociólogo alemão
Norbert Elias chamou a isso de “identidade-nós”, de origem coletivista, na qual
a expressão da individualidade (a “identidade-eu”) está subordinada ao
interesse do grupo. Ela é própria de sociedades primitivas e simples,
modernamente são exemplificadas por grandes estados totalitários ou de
bem-estar social, que se arvoram no direito de saber o que “é melhor e mais
justo” para seus membros. Eles “substituem” a família para o indivíduo nos
estados totalitários (não à toa, na China, na URSS e na sombria Coréia do Norte,
respectivamente Mao, Stálin e os Kins, eram considerados “pais” ou “tios” dos
cidadãos); e nos estados de bem-estar social democráticos infantilizam os
cidadãos, procurando proteger os indivíduos de suas próprias escolhas (são os
“estados-babás”).
A segunda força, que
possivelmente se expressou na atitude daqueles que votaram pela permanência na
União Europeia, nasce da primeira, da seleção natural por adaptação de genes,
mas se sobrepõe a ela, pela capacidade de se contrapor aos ditames instintivos
básicos, apesar de sua lógica obedecer à mesma da seleção de genes original, ou
seja, maximizar as possibilidades de sobrevivência de uma espécie: a seleção
cultural adaptativa por meio de ideias. A elaboração desta teoria é de
responsabilidade do grande biólogo evolucionista inglês Richard Dawkins, aqui
eu a estou aplicando no âmbito das ciências sociais.
Os habitantes das grandes
metrópoles cosmopolitas britânicas e as gerações mais novas, expostas
intensamente às mudanças promovidas pela globalização, não se assustam fácil
com a presença de comportamentos estranhos. A internet, um dos produtos mais
avançados e palpáveis da revolução dos sistemas de informação transformou o
planeta numa aldeia virtual. Portanto, não há mais com o que se surpreender
face ao inusitado!
Este tipo de mentalidade,
aberta à integração, favorece comportamentos e possivelmente a existência de
instituições sociais e políticas integracionistas, cujo maior exemplo histórico
para sociedades diversas é exatamente a União Europeia. Isto é, sociedades
complexas, assentadas na expressão da “identidade eu” (a individualidade
ocidental) conseguem conviver juntas e em paz, a partir de consensos
econômicos, sociais e políticos, garantidos por tratados e instituições organizacionais
administrativas comuns.
Em termos de seleção
cultural adaptativa a um mundo globalizado, pelas razões vistas, a experiência
histórica da União Europeia representa uma resposta de sucesso, evidentemente passível
de dificuldades que podem levar a crises e recuos, como a saída britânica e
anteriormente o desastre financeiro da Grécia. Porém, a longo prazo, o enfraquecimento
de instituições próprias de cada estado-nação, provocando a perda do poder
local (sobretudo bélico) dos países e o fortalecimento do poder compartilhado,
deverá garantir períodos de estabilidade econômica e política cada vez mais
extensos, o que em termos de Europa representa afastar do horizonte os
terríveis fantasmas herdados das duas grandes guerras do século XX.
Nada garante, no entanto,
que esta experiência histórica da UE progredirá. Afinal ela é uma invenção
humana, que obedece aos critérios de uma seleção cultural adaptativa, que
orienta os indivíduos na procura de respostas que lhes proporcionem as melhores
condições para sobreviver e se multiplicar. A defecção do Reino Unido representa
uma ameaça, que pode ser indício do fracasso. Porém, caso a UE se fortaleça e
seja bem sucedida, representará a sobreposição de uma ideia auspiciosa sobre os
instintos básicos da seleção natural.
No entanto, devo recordar
que a seleção cultural é originária da seleção natural, diria mesmo que a
primeira é o prolongamento da segunda. Assim, para eras futuras, posso imaginar
uma análise sociológica que defenda a tese de que a ideia de uma integração
planetária reflita somente o reconhecimento de que todos os humanos fazem parte
de uma só espécie animal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente essa postagem
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.