5 de ago. de 2016

Sobre as razões do “Brexit”! (04/08/2016)


Prof. Dr. Geraldo Filho

O mundo se chocou no primeiro semestre desse ano com o “Brexit”, acrônimo para a saída da Grã-Bretanha da União Europeia (Britain + exit) por meio de plebiscito! Multiplicam-se análises atônitas sobre as possíveis causas que justifiquem a decisão da maioria do povo britânico. Elencam-se razões econômicas; políticas; de identidade nacional e religiosa, motivadas pela chegada de imigrantes, sobretudo muçulmanos... Porém, o que se pode dizer até o momento, com certeza, é que ninguém conseguiu esgotar as possibilidades imagináveis.
É bom lembrar – particularmente para os que acreditam que a história obedece a leis férreas, como o determinismo da estrutura econômica ou de classes – que na raiz do evento político aqui abordado encontra-se um cálculo tático mal elaborado. Ou por excesso de confiança, que estimula a vaidade; ou por incontinência verbal, além de miopia na avaliação do contexto político britânico e do mundo, o então Primeiro-Ministro David Cameron prometeu nas últimas eleições para o parlamento – visando à manutenção ou ampliação das cadeiras do Partido Conservador – que faria, em 2016, consulta à população para decidir sobre a permanência ou a saída da União Europeia.
Na verdade, nunca passou pela cabeça de Cameron realizar o tal plebiscito! Confiante na boa situação econômica do Reino Unido (portanto, a tese de Bill Clinton, de que é a economia que sempre resolve uma eleição, pode ser relativizada!) ele cogitou que “dava para empurrar com a barriga”, sem muito desgaste, essa história de consulta popular, afinal foi só um arroubo de campanha, etc., e, em termos relativos, a sociedade em geral estava bem!
O problema é que Cameron esqueceu-se de que “era inglês” e, o pior, no seu próprio país! Fosse aqui pelo Brasil, no qual promessas políticas de campanha não passam disso mesmo, promessas, Cameron não teria protagonizado o vexame pelo qual passou, e continuaria como premiê. Resultado, pressões de alas mais nacionalistas do Partido Conservador e o oportunismo político do Partido Trabalhista (mirando o posto de Cameron) forçaram o plebiscito e deu no que deu!
Impôs-se então a questão: Como um país, cujos indicadores sociais e econômicos relativos a União Europeia e ao mundo são positivos, além de gozar sólida estabilidade política, pode optar por um mergulho na turbulência da indefinição?
A esta pergunta, muitas respostas! No entanto, sem excluir aquelas que já foram dadas ou estão sendo preparadas gostaria de chamar a atenção para possíveis explicações que comumente são esquecidas na abordagem de fenômenos de natureza sociológica e política, não obstante sejam parte inerente e fundamental da natureza das sociedades.
O que se tem como óbvio é que quem votou pela saída foram gerações mais velhas de britânicos, que se concentram fora das grandes cidades cosmopolitas do Reino (como Londres) e são saudosistas do velho estado de bem-estar social (“welfare state”) que se estabeleceu depois da 2ª Guerra e durou até Margareth Thatcher. As bandeiras de campanha desse segmento social são nacionalistas e tendem à xenofobia, que se manifesta comumente mediante a crítica de que nada o Reino Unido ganhou ao integrar-se a União Europeia, pelo contrário, só perdeu, com os nativos deixando postos de trabalho para os imigrantes europeus que podiam circular livremente, com os mesmos direitos de um cidadão britânico.
Por outro lado, quem votou pela continuidade na União Europeia foram gerações mais novas e habitantes dos grandes centros urbanos, que estavam na infância “quando”, ou nasceram “depois”, de que Thatcher começou a desmontar o estado social. Só para lembrar, estado de bem-estar social se caracteriza por ser grande, com empresas estatais atuando fortemente na economia e enormes burocracias criando e gerenciando políticas públicas. O que há em comum a todos é que em nome da justiça social entregam ineficiência e corrupção, cujo exemplo clássico atual é o Brasil.
Essas gerações mais novas referidas acima se caracterizam por uma mentalidade cosmopolita, integracionista, refletindo a globalização dos anos 90 e século XXI, devido à complementaridade das grandes cadeias produtivas mundiais (que interligam num mesmo sistema de produção, circulação e consumo um criador de frango no interior do Brasil a um assador de frango de esquina numa cidade da China ou da Índia, para ficar num exemplo simples); e consequência também da revolução dos sistemas de informação, ocorrida no mesmo período, que possibilitou a unificação do mercado financeiro global (para o bem ou para o mal, pois o mau humor na Bolsa de Valores no Japão, por causa de uma crise interna, afeta todo o sistema) e a homogeneidade dos gostos e comportamentos a partir da estética ocidental (para horror dos empedernidos muçulmanos, se deixar, seus jovens aderem fácil aos ritmos dançantes, à ciência, à moda, à culinária, à literatura, ao cinema e ao teatro produzido no eixo anglo-americano-franco-ítalo-germânico).
O que significam, portanto, estes dois comportamentos votantes? A meu ver refletem duas forças poderosas, cujas raízes estão para além das explicações convencionais de natureza sociológica e política, que agem no subterrâneo das sociedades e moldam as instituições humanas em geral. A primeira expressa um dos instintos básicos da natureza animal da qual o homem faz parte, e que ajudou a modelar a seleção natural das espécies desde que existe vida: a seleção natural adaptativa de genes, parentesco ou grupo (seleção multiníveis).
Nacionalismo e xenofobia (aversão aos estrangeiros) são as duas faces de uma mesma moeda, representam estender para a nação (grupo) os comportamentos instintivos básicos do núcleo familiar (genes) e dos seus componentes (parentes), guiados pela necessidade de maximizar as chances de nutrição, proteção e reprodução. Quaisquer indivíduos ou situações que sejam identificadas como supostas ameaças a estes imperativos fundamentais de sobrevivência serão considerados inimigos e passíveis de ataque ou preconceito.
As emoções como a raiva e o medo provavelmente estão por trás do sentimento nacionalista e xenófobo, principalmente quando resultado da perda de empregos para imigrantes que pressionam os salários para baixo e muitas vezes têm um bom preparo educacional, igual ou superior aos nativos; perda de empregos porque empresas nacionais mudam para outros países da União à procura de custos trabalhistas mais baixos; ou porque resultam da perda da identidade nacional, ao veem pelas ruas de suas cidades a multiplicação de comportamentos exóticos que nada têm a ver com sua sociedade original, do tipo uma mulher andando de burca (veste muçulmana que cobre todo o corpo) ou mesquitas sendo abertas (coisa impensável se uma igreja católica ou protestante tentasse se estabelecer no Irã!).
O sociólogo alemão Norbert Elias chamou a isso de “identidade-nós”, de origem coletivista, na qual a expressão da individualidade (a “identidade-eu”) está subordinada ao interesse do grupo. Ela é própria de sociedades primitivas e simples, modernamente são exemplificadas por grandes estados totalitários ou de bem-estar social, que se arvoram no direito de saber o que “é melhor e mais justo” para seus membros. Eles “substituem” a família para o indivíduo nos estados totalitários (não à toa, na China, na URSS e na sombria Coréia do Norte, respectivamente Mao, Stálin e os Kins, eram considerados “pais” ou “tios” dos cidadãos); e nos estados de bem-estar social democráticos infantilizam os cidadãos, procurando proteger os indivíduos de suas próprias escolhas (são os “estados-babás”).
A segunda força, que possivelmente se expressou na atitude daqueles que votaram pela permanência na União Europeia, nasce da primeira, da seleção natural por adaptação de genes, mas se sobrepõe a ela, pela capacidade de se contrapor aos ditames instintivos básicos, apesar de sua lógica obedecer à mesma da seleção de genes original, ou seja, maximizar as possibilidades de sobrevivência de uma espécie: a seleção cultural adaptativa por meio de ideias. A elaboração desta teoria é de responsabilidade do grande biólogo evolucionista inglês Richard Dawkins, aqui eu a estou aplicando no âmbito das ciências sociais.
Os habitantes das grandes metrópoles cosmopolitas britânicas e as gerações mais novas, expostas intensamente às mudanças promovidas pela globalização, não se assustam fácil com a presença de comportamentos estranhos. A internet, um dos produtos mais avançados e palpáveis da revolução dos sistemas de informação transformou o planeta numa aldeia virtual. Portanto, não há mais com o que se surpreender face ao inusitado!
Este tipo de mentalidade, aberta à integração, favorece comportamentos e possivelmente a existência de instituições sociais e políticas integracionistas, cujo maior exemplo histórico para sociedades diversas é exatamente a União Europeia. Isto é, sociedades complexas, assentadas na expressão da “identidade eu” (a individualidade ocidental) conseguem conviver juntas e em paz, a partir de consensos econômicos, sociais e políticos, garantidos por tratados e instituições organizacionais administrativas comuns.
Em termos de seleção cultural adaptativa a um mundo globalizado, pelas razões vistas, a experiência histórica da União Europeia representa uma resposta de sucesso, evidentemente passível de dificuldades que podem levar a crises e recuos, como a saída britânica e anteriormente o desastre financeiro da Grécia. Porém, a longo prazo, o enfraquecimento de instituições próprias de cada estado-nação, provocando a perda do poder local (sobretudo bélico) dos países e o fortalecimento do poder compartilhado, deverá garantir períodos de estabilidade econômica e política cada vez mais extensos, o que em termos de Europa representa afastar do horizonte os terríveis fantasmas herdados das duas grandes guerras do século XX.
Nada garante, no entanto, que esta experiência histórica da UE progredirá. Afinal ela é uma invenção humana, que obedece aos critérios de uma seleção cultural adaptativa, que orienta os indivíduos na procura de respostas que lhes proporcionem as melhores condições para sobreviver e se multiplicar. A defecção do Reino Unido representa uma ameaça, que pode ser indício do fracasso. Porém, caso a UE se fortaleça e seja bem sucedida, representará a sobreposição de uma ideia auspiciosa sobre os instintos básicos da seleção natural.

No entanto, devo recordar que a seleção cultural é originária da seleção natural, diria mesmo que a primeira é o prolongamento da segunda. Assim, para eras futuras, posso imaginar uma análise sociológica que defenda a tese de que a ideia de uma integração planetária reflita somente o reconhecimento de que todos os humanos fazem parte de uma só espécie animal.

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