Prof. Dr. Geraldo Filho (UFPI)
Fico feliz quando a realidade comprova aquilo que os alunos de Administração e Contábeis veem comigo como teoria e exemplos na sala de aula. Isto é, o mundo como ele é prova que o que aprendem corresponde ao real, não a fantasias especulativas, sem base empírica.
Nos primeiros contatos de cada semestre letivo se deparam com constatações às vezes chocantes: 1. De que os humanos, como todos os animais, organizam a vida para garantir as funções de nutrição, proteção e reprodução, portanto, para maximizar as chances de sobreviver e a de seus parentes, assim, movimentam-se por interesses, ou, com uma pitada de juízo moral, por egoísmo; 2. De que na busca por garantir aquelas três funções mencionadas a sociedade acaba por se fundir com o mercado, com aquilo que meus alunos veem esquematicamente como “circuito das mercadorias”, e, que, se este enorme e complexo sistema de satisfação das necessidades humanas for por alguma razão interrompido a sociedade como um todo entrará em colapso.
Dito isto, lamento profundamente a desordem na qual o Brasil se encontra! Porém, as causas que explicam esse fracasso civilizatório têm raízes nas decisões tomadas no passado, pelas gerações que nos precederam e traçaram o destino miserável que nos legaram como herança.
A geração de Getúlio Vargas, e às que a sucederam, foi incapaz de ler corretamente às mudanças que ocorreram nas décadas que compreenderam a 1ª e a 2ª Guerra, no século XX. Naquele contexto histórico, a Inglaterra (cujas revoluções industriais criaram o mundo e o modelo de estado e sociedade no qual vivemos), esgotada pelas guerras, passou o comando da hegemonia política e econômica internacional para os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, modificou-se a concepção de infraestrutura de transportes que dava sustentação ao modelo de desenvolvimento das economias industriais, abandonou-se o trem (modo inglês) e se adotou o caminhão (modo americano), claramente estimulado pelos lobbies das montadoras multinacionais de automóveis de carga e passeio.
É interessante notar que a Índia, que passou décadas sob o domínio do Império Britânico, quando conseguiu sua malfadada independência com o equivocado e obtuso Gandhi (uma vez que o país mergulhou no atraso a partir dos anos 50! As pessoas não sabem, mas ele queria que as mulheres voltassem a tecer as roupas da família em casa, nas rocas!) tinha boa parte do território subcontinental interligado pelas ferrovias inglesas! Na mesma época, o Brasil começava a abandonar suas ferrovias, diminuindo os investimentos na expansão e na manutenção das máquinas e das vias férreas. Aqui, em Parnaíba, temos um exemplo do que foi a grandiosidade do passado ferroviário, que hoje se deteriora, trata-se do complexo de estações e oficinas de trens que se estende da Avenida São Sebastião até a Praça do Quadrilhódromo, na Avenida Raimundo Vieira.
A geração de Getúlio, e as subsequentes, encampou também uma tolice nacionalista, travestida de grande ideia, que ainda nos atormenta! Um país pobre, sem recursos, com uma série de desafios prementes na área de educação e saúde, resolveu ser dono de uma petroleira, criando um monstro de ineficiência e corrupção como a Petrobrás.
Ineficiência, pois de acordo com dados de 2017, comparada com a estatal de petróleo da Noruega (Statoil), a Petrobrás produz a mesma coisa em quantidade diária de barris de petróleo só que com nove vezes mais funcionários (Statoil: 20.245; Petrobrás: 69.000 concursados e 118.000 terceirizados). Em termos de produtividade, isto é um escândalo!
Corrupção, pois até as baratas da Lua sabiam que a cúpula gestora da empresa não era indicada por critérios de meritocracia e mercado, mas obedecia a indicações políticas, com a missão de fraudar licitações e contratar empresas parceiras para a gigante petroleira, que como contrapartida destinavam percentuais dos contratos para as cúpulas partidárias. A Operação Lava Jato, nos últimos anos, vem trazendo à luz as engrenagens desse processo que corrompeu o Estado, a partir de interesses de partidos e empresários.
Estes dois fantasmas do passado habitam entre nós 4,5 gerações depois (tomando 1930 como base e 20 anos como 01 geração) e se manifestam na formação dos preços ao longo de todas as cadeias produtivas de mercadorias (bens e serviços) da economia, seja na agricultura e pecuária, seja na indústria e no comércio. A formação dos preços em todo o complexo das cadeias produtivas reflete o custo de produção e distribuição da gasolina e do diesel; além de incorporar o valor dos fretes do transporte rodoviário, que embute nele os custos do financiamento e manutenção dos caminhões.
Em termos econômicos, falando de uma economia de mercado livre como é o Brasil, a formação dos preços dos combustíveis está correta! Eles refletem os custos de produção e distribuição de uma mercadoria acrescido dos impostos, além de ficar sujeito aos humores da oferta e da procura dos consumidores. Por outro lado, se eles estão altos em relação ao poder de compra dos brasileiros ou sofreram aumentos sucessivos, diários algumas vezes, o problema não está na formação dos preços em si, mas, sim, no pesado ônus de se ter uma estatal ineficiente (pelas razões apontadas) e da opção errada pelo transporte rodoviário como modo de escoamento das mercadorias.
Assim, as reivindicações dos caminhoneiros ferem apenas a superfície do problema e sequer conseguem esclarecer, para eles mesmos, sua verdadeira dimensão e possíveis implicações! Baixar os preços dos combustíveis na marra, zerando ou reduzindo impostos que incidem sobre eles, tem o efeito aparente de diminuição imediata na bomba, mas eles serão recompostos difusamente em outros impostos já existentes (que terão as taxas majoradas) ou impostos novos a ser criados, que os próprios caminhoneiros e seus familiares pagarão também, como cidadãos brasileiros que são. Mas, por que tem de ser assim?!
Pois é! É aqui que se conjura outro fantasma do passado, criado a partir das gerações de pós 30, que vem nos assombrar! O Estado brasileiro é gigantesco e foi moldado lá atrás como um enorme “estado de bem-estar social”, o que significa que é uma máquina pantagruelica devoradora de impostos, que tem como característica o desequilíbrio fiscal das contas públicas (eterno desacerto entre receita e despesa!), cabe ressaltar que esta é uma característica de todo Estado que se constituiu como “estado de bem-estar”, como a velha Inglaterra, mas, com uma diferença crucial, e eis o problema singular do Brasil!
O Brasil Moderno, que começou nos anos 30, teceu uma imensa rede de proteção social, mediante políticas públicas universais de saúde, educação e previdência, o que conseguiu, ao longo de gerações, um grande sucesso, melhorando as condições de vida relativas das pessoas e favorecendo a legitimação política dos governantes populistas. De Getulio a Lula, passando por Juscelino e Goulart, não à toa, todos disputaram o troféu do “mais popular”, o “pai dos pobres”, etc. Porém, a um custo que um dia cobraria seu alto preço: a condenação à taxas de crescimento medíocres, que, ao longo do tempo, nos deixa para trás em relação aos países desenvolvidos!
O Brasil, e eis o problema jabuticaba brasileiro, construiu um “estado de bem-estar social” sobre uma base econômica que não era a industrial, o país ainda era uma imensa fazenda, herdada da República Velha, sustentada no café, no açúcar e no gado de corte e leite (com algumas riquezas regionais também agrícolas, como o cacau, a carnaúba, o algodão e a borracha, mas com baixa intensidade tecnológica!). O mestre Roberto Campos, maior economista brasileiro, gostava de dizer: um “estado de bem-estar social sueco com recursos africanos”! Portanto, o Brasil que de fato se industrializou no período iniciado pela Revolução de 30, o que costumo chamar de o Brasil Moderno, já estava, no nascedouro, marcado pelo pecado da pesada carga tributária.
Essa greve não é apenas de caminhoneiros autônomos, contou maciçamente com a organização e participação de empresários dos transportes. Mas, o quê?! Quer dizer que os interesses de patrões e empregados coincidiram em torno de uma reivindicação comum?! Não, quer dizer que o interesse dos grandes empresários do setor de transporte rodoviário manipulou o desconforto imediato dos caminhoneiros autônomos, e das pequenas transportadoras, com o aumento constante do diesel e o impacto corrosivo sobre os custos de sua atividade, para impor sua pauta ao governo! Pois quem ganhará no curto prazo com as concessões feitas por Temer serão as grandes transportadoras, não seus empregados caminhoneiros e nem os independentes, cuja realidade financeira pouco mudará.
E então novo fantasma emerge das brumas do tempo! A mentalidade empresarial que se forjou com a industrialização de Getúlio e sua geração. Os militares levaram Getúlio ao poder, que por sua vez, estudou na antiga Academia Militar do Rio Grande, portanto, professavam a mesma visão de mundo moldada no positivismo militar de Benjamin Constant. A elite do exército era consciente de que para modernizar a força terrestre, depois da 1ª Guerra, fazia-se necessário a industrialização do país, e assim se procedeu: a arte da guerra não poderia ser mais exercida com o cavalo, mas com aço! O empresariado industrial nacional se desenvolveu então financiado pelas gordas linhas de crédito do tesouro brasileiro, via Banco do Brasil; além de contar com a proteção estatal contra a concorrência externa. Estava, pois, estabelecido os requisitos para a criação de uma mentalidade empresarial “estatal”, quer dizer, subordinada ao Estado, eternamente viciada no financiamento camarada do dinheiro publico e avesso a qualquer tipo de competição, inclusive contra empresas locais.
As grandes transportadoras compreendem que a formação dos preços dos combustíveis não está distorcida. Se os preços são elevados não são pelas razões apresentadas. Elas sabem que as verdadeiras razões são o alto custo do modo de escoamento das mercadorias no país, feito pelos caminhões e pelas rodovias (cuja manutenção é caríssima e constante); sabem que é a interferência determinada pelo monopólio da Petrobrás no refino do petróleo que pressiona os preços, principalmente devido à baixa produtividade. Porém, onde estavam as reivindicações para mudar o modo de escoamento, incrementando a presença da ferrovia, o que forçaria intensa competição entre as transportadoras, que para permanecerem vivas no mercado teriam que elevar substancialmente a qualidade dos seus serviços?! Onde estavam as reivindicações pela melhoria radical da malha rodoviária, que rebaixaria os custos de manutenção, pela redução dos danos nos caminhões?! Onde estavam as reivindicações pela privatização da Petrobrás, que desencadearia enorme competição no setor, feita por empresas privadas, cujo beneficiário seria toda a sociedade brasileira, de empresários dos transportes ao consumidor comum, tal qual ocorreu com a privatização do sistema Telebrás e possibilitou que hoje todos os cidadãos tenham acesso aos telefones e a internet?!
Não tenho o olhar ingênuo de Alice, no mundo fantástico do País das Maravilhas! Meu espírito malicioso me diz: Como tu esperas isto, Geraldo Filho? Olha a fenomenal quantidade de interesses que estão articulados ao longo da cadeia produtiva dos transportes e da produção de combustíveis, que começa lá em alto mar, na prospecção, extração e refino do óleo e vai até às bombas dos postos e aos lares (gás de cozinha) pelo país. Olha o tamanho da frota necessária para cobrir o continente brasileiro e toda a logística em termos de postos de abastecimento, concessionárias, oficinas, lojas de peças, borracharias, etc. Quem terá a coragem de enfrentar lobbies poderosos que defendem esta articulação de interesses, que torna refém do seu puro egoísmo, mesmo que legítimo, à sociedade brasileira?!
Egoísmo legítimo?! Sim. O egoísmo por trás dos interesses, próprios da natureza humana, aparece quando nos encontramos em perigo. Na semana passada, auge da paralisação dos caminhoneiros, repórteres de TV perguntaram a uma senhora e depois a uma moça, ambas com os carrinhos de supermercado lotados de produtos, se diante do risco de desabastecimento não imaginavam que ao agir daquela maneira estavam prejudicando outras pessoas, pois ao comprarem muito e deixavam quase nada para os demais. As respostas foram estarrecedoras, porém esclarecedoras: Nessas horas a gente só pensa na gente e nos nossos familiares! Pergunto: Onde está o verniz civilizatório que anos de educação familiar, escolar e religiosa pretendem nos conceder?!
E quando não estamos em perigo, para onde vai o egoísmo por trás dos interesses?! Ele se fantasia de reivindicações que aparentemente beneficiariam a todos, mas, que, na verdade, correspondem aos interesses de poucas categorias profissionais. E, como, por mais legitimo que sejam, interesses de uma parcela pequena da população não podem comprometer o abastecimento alimentar, a saúde, a educação e o direito de ir e vir de milhões de seres humanos, afirmo que esse movimento de donos de transportadoras e caminhoneiros autônomos é um crime!
É, portanto, assombroso o que nossos fantasmas do passado podem fazer, levar a que 87% da opinião pública apoie este crime, segundo pesquisa feita pelo Datafolha e divulgada ontem (30/05/18), na qual se perguntava se o entrevistado apoiava ou não a greve dos caminhoneiros. Ou seja, os brasileiros apoiam sua autodestruição!