Diante do desafio do
sistema de saúde em garantir o acesso à assistência e aos serviços de saúde,
direito constitucional de todos os brasileiros, e sabedor de que esse preceito
não está sob a responsabilidade exclusiva de uma única classe profissional, não
poderia deixar de me manifestar em relação à campanha caluniosa que vem sendo
promovida nos últimos meses, em diferentes mídias, por algumas entidades
médicas, sobre a categoria farmacêutica.
Na condição de
presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF) – órgão regulamentador da
profissão farmacêutica no Brasil –, repudio com veemência as acusações de que o
CFF regulamentou o “exercício ilegal da medicina”, ao publicar as
Resoluções/CFF nos 585 e 586/2013. Essas calúnias remetem, no mínimo, a dois cenários:
ou os médicos não leram as referidas normativas e se pronunciam sem conhecer a
matéria ou não a interpretaram de maneira adequada. Como tenho afirmado
categoricamente, nessas regulamentações não se identificam quaisquer atividades
privativas dos médicos, estabelecidas pela Lei no 12.842/13 (lei do ato
médico).
Essas resoluções
estabelecem em seu escopo os direitos e os deveres do farmacêutico, ao prestar
cuidado individual ou coletivo, e de forma colaborativa, sempre que necessário.
Será que os médicos são, realmente, contrários a que os farmacêuticos
proporcionem cuidado ao paciente, à família e à comunidade, com o objetivo de
promover o uso seguro e racional de medicamentos, otimizar a farmacoterapia,
prevenir doenças e promover saúde?
Apesar dos inegáveis
avanços na área da saúde e também da ampliação no acesso aos medicamentos e a
outros recursos terapêuticos, não tem sido possível garantir um cuidado
contínuo e integrado nos diversos pontos de atenção à saúde. O modelo
assistencial em vigor no país – fragmentado, hierarquizado, centrado no médico,
orientado à doença aguda, e que promove pouca autonomia do paciente – não tem
conseguido responder de forma resolutiva e custo-efetiva às necessidades de
saúde da população.
Para respaldar tais
afirmações, recorro a dados que demonstram a falta de controle de doenças de
alta prevalência e com impacto na principal causa de morte no país. Cerca de
70% dos pacientes não conseguem controlar a hipertensão, o diabetes ou as
dislipidemias, mesmo tendo diagnóstico e prescrição de médicos. Adicionalmente,
o subdiagnóstico continua elevado, e a promoção da saúde, por meio de
modificação de hábitos de vida, segue negligenciada. Esses problemas têm
elevado os custos e tornado insustentável o financiamento da saúde,
especialmente em uma sociedade polimedicada e em processo de crescente
envelhecimento.
Dados do Ministério da
Saúde revelam que 82% dos pacientes que utilizavam 5 ou mais medicamentos de
uso contínuo o faziam de forma incorreta ou demonstravam baixa adesão ao
tratamento. Um em cada três pacientes abandonou algum tratamento, 54% omitiram
doses, 33% usaram medicamentos em horários errados, 21% adicionaram doses não
prescritas, 13% não iniciaram algum tratamento prescrito, entre outras
constatações.
Ressalte-se que o
Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de automedicação sob influência de
propaganda, que induz, muitas vezes, ao consumo irresponsável de medicamentos.
Diante desse cenário,
pergunto: é mais seguro e mais efetivo alguém selecionar medicamentos de venda
livre sozinho ou contar com o apoio de um farmacêutico? Prescrever medicamentos
de venda livre é exercício ilegal da medicina? O encaminhamento precoce de
pacientes sem diagnóstico nosológico ao médico é uma prescrição farmacêutica
danosa à saúde? É mais adequado o paciente gerenciar por conta própria o seu
tratamento ou contar com o apoio de um farmacêutico para avaliar a necessidade,
a efetividade, a segurança e a adesão? Por que os farmacêuticos não podem
auxiliar os pacientes, já diagnosticados e sob tratamento médico, a controlar
as suas doenças, por meio do acompanhamento farmacoterapêutico? Prevenir erros
de medicação quando o paciente transita por diferentes serviços de saúde é
prejudicial à sociedade? Fazer atendimento humanizado e com privacidade, em
consultório, como qualquer outro profissional da saúde, constitui exercício
ilegal da medicina?
A quem interessa
ignorar evidências científicas que indicam ser a atuação clínica dos
farmacêuticos uma importante contribuição para o diagnóstico precoce, para a
autonomia dos pacientes e para terapias mais efetivas e seguras, com
consequente redução de custos para o paciente e para o sistema de saúde? Até
quando os gestores serão induzidos a desconsiderar que as farmácias constituem
um lugar de atenção à saúde e uma das portas de entrada ao sistema de saúde?
O farmacêutico não pode
e não vai ficar de olhos fechados diante das necessidades de saúde dos que o
procuram em busca de assistência. É dever do farmacêutico prover cuidados, e
nenhuma entidade ou interesse corporativo irá limitar o direito de acesso da
sociedade aos seus serviços. Não há tempo a perder com insultos corporativos. A
categoria farmacêutica merece respeito.
Esclareço, ainda, que,
como toda entidade de profissão regulamentada no país, o sistema CFF/CRFs
dispõe de mecanismos para coibir qualquer ato de imperícia, imprudência ou
negligência. Sempre agi, e continuarei agindo, em defesa da sociedade e não
serei condescendente com aqueles que porventura vierem a infringir as normativas
e o código de ética da profissão farmacêutica.
Por fim, conclamo as
entidades médicas brasileiras a refletir sobre o que diz a declaração da
Associação Médica Mundial:
“O paciente será mais
bem servido quando farmacêuticos e médicos colaborarem entre si, reconhecendo e
respeitando os papéis de cada um, para garantir que os medicamentos sejam
usados de forma segura e adequada, para alcançar o melhor resultado para a saúde
do paciente”
(Declaração de Tel
Aviv, 1999)
Espero encerrar aqui
esta polêmica que, a meu ver, não deveria mais prosperar entre entidades
profissionais que devem unir esforços em prol da saúde da população.
Walter da Silva Jorge
João
Presidente do Conselho
Federal de Farmácia - CFF
Brasília-DF, 10 de
junho de 2016.