"Mão Santa" e seus demorados discursos - FOTO: José Neves/SF |
O médico Francisco de Assis de Moraes Souza é um misto de político clientelista - formam-se filas quilométricas de eleitores na porta da prefeitura - com o messianismo típico de algumas cidades do Nordeste. O apelido de “Mão Santa” ganhou o noticiário local, depois que um paciente vindo do bairro de Mendonça Clark espalhou pela cidade que tinha sido curado pelo “doutor de mãos santas”.
Em seus discursos no Senado, Mão Santa juntava, sem cerimônia, na mesma frase o poeta William Shakespeare (1564-1616) com os pensamentos do padre Cícero Romão Batista (1844-1934) “Ô Paulo Paim (PT-RS) aqui na casa de Ruy Barbosa, o bom é que a gente tem tempo para fazer amizade. São oito anos de boa convivência. Como diria o meu padrinho Padre Cícero ‘Só na velhice, pelas sinceras provas de lealdade durante toda a vida do homem, é que se pode ter a convicção da verdadeira amizade.’ Porque de Shakespeare eu copiei ’To be or not to be, that is the question’, ô, Eduardo Suplicy (PT-SP), atentai bem para os ensinamentos de Mão Santa. Eu copio e menciono a fonte”, ressaltava.
Mão Santa era também o terror dos senadores nas manhãs de sextas-feiras, quando a tribuna fica livre das amarras do relógio e os discursos podem se estender até que sobrem pelo menos dois senadores no plenário. Quem fala e quem preside a sessão. “Eu gosto de chegar cedo, aqui. É sempre uma oportunidade para prestar contas do mandato”, dizia. Ele chegou a ficar na tribuna por 97 minutos, falando somente para um sonolento Geraldo Mesquita Júnior (PMDB - AC) sentado na cadeira de presidente.
À época de filiado ao PSC, Mão Santa se colocou como oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Certa vez, a pretexto de reclamar da violência urbana no Brasil, contou que tinha ido tomar um vinho em Buenos Aires. “Eu gosto daquele ar europeu de nariz empinado dos argentinos. Mas pelo menos uma coisa é certa. Buenos Aires é cidade tranquila. Andei às quatro da manhã, de mãos dadas com a Adalgisinha, na Recoleta, onde está enterrada Eva Perón. Ô Lula, eu quero ver se tu tens coragem de pegar a dona Marisa [Letícia] e ir passear com ela numa rua do Rio de Janeiro”, desafiou.
Outra dia, a senadora Patrícia Saboya (PDT-CE) estava fazendo um discurso em defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e foi interrompida ao gritos por Mão Santa pedindo um aperte (comentário sobre o tema que está em pauta). "Ô Patricia, quero lhe dizer que você é a Iracema dos olhos de mel e cabelos da cor das asas da graúna”. A ex-mulher de Ciro Gomes (PDT) não sabia se ria ou se concedia o aperte a Mão Santa. “Senador, mil perdões. Eu tenho apenas cinco minutos”. Mão Santa era conhecido por citar seus pensamentos, mesmo que não tivessem nenhuma ligação com o discurso que estava sendo feito, e sem se ater ao cronômetro.
Casado com Adalgisa Moraes Souza, sua suplente no Senado, Mão Santa tinha um argumento infalível. “É a melhor coisa. Não tem traição. Se um dia eu faltar, Adalgisinha vem me substituir e tocar adiante os projetos para o meu povo sofrido do Piauí”, defendia. Cassado por corrupção eleitoral em 2001, Mão Santa entrou para a história do Brasil como o primeiro governador a perder o mandato. “Aquilo foi armação de Hugo Napoleão (PFL). Comprar voto? Mão Santa? Mão Santa ajuda os pobres. A neurolinguística, hoje, diz que há uma modelagem: se você quer ser político democrático, você busca Abraham Lincoln (1809-1965); se você é autocrático, militar, vá estudar a vida de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Estudando a vida de Abraham Lincoln, eu vejo caridade para todos, malícia para nenhum e firmeza no direito”, dizia.
Antes de descer pela última vez da tribuna do Senado, passadas mais de duas horas de despedida, Mão Santa agradeceu ao senador Papaléo Paes (PSDB-AP) que conduzia a derradeira sessão do ano. “Volto para o meu Piauí com o dever cumprido. Agradeço, Papaléo, e apenas fico lhe devendo o presente de Natal. Eu vou comprar ali o disco do Roberto Carlos: ‘meu amigo de fé, meu irmão camarada’", desceu cantarolando. Por vezes faltam ao Senado atual discursos com um viés de crônica narrativa e seus personagens espalhados pelo sisudo plenário, quase sempre modorrento.
Por: Romoaldo de Souza | jc.ne10.uol.com.br/
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