15 de mai. de 2021

Narrativas como armas de guerra política e não Narrativas com armas...

Prof. Dr Geraldo Filho (UFDPar - 15/05/2021)

Observando os acontecimentos no Brasil que envolvem a pandemia do Covid-19, chama atenção o uso fácil por parte de políticos, jornalistas e professores universitários (que por dever de ofício deveriam ser mais criteriosos no uso dos conceitos) do substantivo feminino “narrativas”!

 

A aplicação descuidada do substantivo citado a tudo que tem a pretensão de explicar alguma coisa, seja um fato social ocorrido (político, econômico, religioso ou estético) ou um fenômeno natural, obedece a uma motivação ideológica (em regra de natureza política) que desloca o significado das palavras segundo os interesses de uma visão utópica de mundo; ou, por outro lado, decorre da ignorância em epistemologia das ciências, que se baseia em evidências empíricas, cujas premissas devem gerar conhecimento que procura reduzir ao mínimo possível incertezas ante ao fato ou fenômeno que se deseja investigar! Que fique claro, estou dizendo “reduzir ao mínimo” e não “totalmente”, dado que uma das premissas fundamentais da ciência é a complexidade do real, que sempre deixa margem para o inusitado e o imponderável!

 

No entanto, deixar margem para o que não foi previsto em um estudo cientifico não significa ser condescendente para com a validade de “qualquer discurso” proferido por alguém, ou por um grupo, sobre qualquer dimensão integrante do mundo ao redor! Ora, exatamente contra isto que a ciência ocidental se construiu a partir do começo da Idade Moderna, para tanto consolidando alguns procedimentos que se tornaram clássicos e que estão nas origens de cada “disciplina” cientifica que existe hoje, que são: observação, descrição, explicação (experimento: para os cientistas da natureza, os laboratórios; para os cientistas sociais, o “laboratório” da história, por isto é inconcebível um sociólogo que não conheça profundamente historia da evolução humana e das sociedades) e, se possível, generalização (comparação).

 

Porém, as consequências da 1ª e 2ª Guerras para a Alemanha e a França, dentre as quais o desencanto coletivo com as promessas de paz e prosperidade acalentadas pela rápida industrialização de seus países e modernização das cidades (sentimento consagrado pela expressão “Bela Época”; vale a pena assistir a série alemã “Babylon Berlin”!) atingiu as universidades alemãs e francesas, levando os professores de filosofia e ciências sociais a abraçarem uma espiral de irracionalidade cognitiva que ainda não se dissipou, fazendo com que renunciassem à procura do conhecimento cientifico com o máximo de objetividade possível e começassem a propagar o sofisma (uma verdade aparente, como: o céu é azul ou o mar termina na linha do horizonte!) de que qualquer discurso proferido sobre algo teria sua validade referendada por um suposto “regime de verdade”, que momentaneamente vigorasse em determinado contexto social. Marcava-se, assim, a ruptura com a tradição do espírito científico da Modernidade e dos seus critérios de legitimação!

 

Os protagonistas desse movimento ficaram conhecidos como “pós-modernos”, que elegeram como missão destruir a ciência tradicional do Ocidente, que segundo eles era burguesa e servia ao capitalismo, usando como estratégia relativizar e desqualificar suas teorias e métodos estabelecidos (ao contrario de aperfeiçoa-los), considerando que ela é somente uma (atenção agora!) “narrativa” possível sobre alguma coisa, tal qual uma “narrativa” religiosa (teológica), uma “narrativa” mitológica ou mesmo uma crendice popular (lendas e superstições)!

 

Como consequência, feria-se de morte a ciência que viabilizou todas as transformações tecnológicas que, tendo como ponto de partida as Revoluções Industriais na Inglaterra (sécs. XVIII/XIX), desenharam o mundo no qual se vive (da roupa que se veste às enormes cadeias empresariais de produção e distribuição que integram os mercados mundiais, garantindo a sobrevivência diária da população do planeta), pela simples razão de ela ter se forjado no contexto histórico da ascensão do empresariado capitalista industrial e financeiro (sendo ao mesmo tempo causa e efeito dele), que segundo eles, estabeleceu como resultado o seu “próprio regime de verdade”.

 

Ora, se isso fosse uma realidade factual, como “imaginavam e desejavam” esses professores (“filosofers”) alemães e franceses, a ciência que elevou a qualidade e a expectativa de vida de bilhões de humanos, que nasceram e morreram desde o século XIX, se veria reduzida e condicionada a um jogo de correlação de forças políticas que a depender do resultado provisório de quem vencesse definiria, a seu interesse ou prazer, o que deveria ser considerado “verdadeiro ou falso”, de acordo com o que fosse estipulado como o “regime de verdade” do vencedor. Mandava-se às favas os cânones dos procedimentos metodológicos da boa ciência e celebrava-se o reino das “narrativas” sem pé nem cabeça, no qual todo discurso sobre o mundo seria válido, pois que quem o profere (“narra”) é um sujeito a partir do seu próprio ponto de vista subjetivo! Contestar sua veracidade seria querer impor o “seu” ponto de vista ou do “seu” grupo com pretensões de dominação! Quanto a referencia aos fatos reais constituintes do mundo concreto, como base para a validação do conhecimento consistente, sai envergonhada e enxotada pelos portões das universidades!

 

Nas universidades brasileiras, por onde passam jornalistas e políticos, e onde o Complexo de Vira-Latas (Nelson Rodrigues) se manifesta pela bajulação jeca de tudo o que é feito na Alemanha e na França, sobretudo quando os autores têm nomes cuja pronuncia dá um ar de “descolado” ou “intelectual” a quem o faz, esse festival de tolices encontrou solo fértil para se propagar e hoje se assiste ou se lê nos telejornais, revistas ou sites o emprego de “narrativas” para se classificar qualquer coisa dita por alguém.

 

Como me filio à tradição da ciência sociológica pautada pelas evidências da empiria (por isso mesmo o domínio e o exercício de uma ciência é uma “disciplina”, exige, portanto, subordinação a um conjunto de regras, para se chegar a bom termo em um empreendimento de pesquisa), fui atrás do contexto histórico e semântico no qual se originou a ideia de que tudo se reduz às “narrativas” e “regimes de verdade”. Logo descobri que a banalização do uso do substantivo “narrativas”, que tem como objetivo relativizar as conquistas da ciência (um dos pilares da civilização ocidental, que nasceu no mundo greco-romano clássico) obedece a uma estratégia de poder política, forjada nas décadas posteriores a Revolução Comunista Russa de 1917, levada adiante pelos partidos comunistas e partidos aliados que se espalharam pelo mundo desde então.

 

Se hoje não existe mais a Pátria Mãe do socialismo/comunismo como um dia foi a URRS, nada impede que os saudosos comunistas da atualidade (como os partidos de esquerda no Brasil) continuem a destilar o veneno de suas ideias criminosas, inspirados no passado stalinista ou maoista, mesmo que, quando interpelados sobre os mais de 20 milhões de mortos em tempos de paz de Stalin e os 70 milhões de Mao (resultado da implantação, à força das armas, do socialismo na União Soviética e na China) jurem, candidamente, que estas experiências de engenharia social utópicas ficaram enterradas no passado, como um velho professor universitário comunista teve a coragem hipócrita de jurar para mim, como se eu, depois de anos de combate intelectual contra eles, não soubesse que uma das principais armas do militante esquerdista é dissimular suas intenções e mentir desavergonhadamente! Por isso os movimentos comunistas são um celeiro de psicopatas, exímios mestres na arte da manipulação!

 

Com efeito, o substantivo “narrativas” sofreu um deslocamento do significado original para poder ser aplicado a qualquer discurso e assim desqualificar a honesta busca objetiva da verdade dos fatos, por mais árduo e difícil que seja este exercício heurístico (pesquisa). Consultando um dos dicionários afamados da língua portuguesa falada no Brasil, o Aurélio Buarque de Holanda, o substantivo “narrativa” significa: “Exposição oral ou escrita de um fato; conto, história.” Note-se que não há relação com o tipo de discurso mediante o qual se faz um comunicado científico de base empírica, que necessariamente deve ser orientado e enquadrado pelo vinculo rigoroso aos fatos constatados que o produziram.

 

Por conseguinte, o discurso científico não pode ser considerado uma “narrativa”, se o for não é ciência (e esse é o objetivo dos seus detratores “pós-modernos”, ao classificá-la como ciência burguesa a serviço do capitalismo), pois esta obriga a sustentação do discurso na realidade fática.

 

Prosseguindo na procura do contexto semântico no qual o significante “narrativas” sofreu uma torção no significado original, descobri como Josef Stalin (1878-1953) e Mao Tse-tung (1893-1976), os dois maiores líderes da história comunista (pois por décadas comandaram países importantes, com impacto geopolítico no séc. XX), lidavam com a verdade dos fatos e sua implicação ética-moral.

 

De acordo com a grande historiadora chinesa Jung Chang (p 26, 2020), no livro “Mao: a história desconhecida”, em escritos da juventude sobre filosofia, por volta dos 24 anos, em 1917, Mao deixou transparecer traços constitutivos do seu próprio caráter, que segundo ela, permaneceram consistentes pelas seis décadas de sua vida e inspiraram seu modo de governar: “Não concordo com a idéia de que, para ser moral, o motivo de nossa ação deve ser beneficiar os outros. A moralidade não tem de ser definida em relação aos outros [...] As pessoas como eu querem [...] satisfazer plenamente o próprio coração, e, ao fazer isso, temos automaticamente o mais valioso dos códigos morais. Claro que existem pessoas e objetos no mundo, mas eles estão todos lá apenas para mim”. (...) “Sou responsável somente pela realidade que conheço e absolutamente não responsável por qualquer outra coisa. Não sei do passado, não sei do futuro. Eles não têm nada a ver com a realidade do meu próprio eu”. (...) “Alguns dizem que temos responsabilidade perante a História. Não creio nisso. Estou preocupado apenas com meu desenvolvimento [...] Tenho meu desejo e ajo de acordo com ele. Não sou responsável perante ninguém”. (p. 26-27, 2020)

 

Para Jung Chang, como consciência sempre implica alguma preocupação com as outras pessoas Mao simplesmente rejeitou o conceito: “Não penso que esses mandamentos [como ‘não matarás’, ‘não roubarás’ e ‘não caluniarás’] têm a ver com consciência. Penso que eles são produtos apenas do interesse próprio e da autopreservação. Todas as considerações devem ser puro cálculo para si mesmo e de forma alguma deve obedecer a códigos éticos externos, ou para os assim chamados sentimentos de responsabilidade”. (p. 27, 2020)

 

A historiadora chinesa resumiu o caráter de Mao, o que permite inferir que para ele e seus adeptos ética e verdade dependem, sobretudo, dos objetivos pessoais que se almeja alcançar em qualquer quadra da vida. Segundo ela: “A atitude de Mao em relação à moralidade tinha um centro, o eu acima de tudo”. (...) “Mao evitava todas as restrições que provinham da responsabilidade e do dever [...] Ele rejeitava explicitamente qualquer responsabilidade em relação a gerações futuras”. (...) “Egoísmo absoluto e irresponsabilidade estavam no cerne da visão de Mao”. (p. 26-27, 2020)

 

Para Josef Stalin e seus camaradas bolcheviques, cuja biografia definitiva, creio, foi escrita pelo historiador inglês Simon Sebag Montefiore, após anos de pesquisa nos arquivos abertos da antiga URSS após sua dissolução em 1991, que resultou em “Stalin: a corte do Czar Vermelho” (2017), o trato com a verdade e a ética-moral também deveria se pautar por interesses estritamente ideológicos, que se encontravam coligidos na tradição literária política inaugurada por Marx, Engels e depois Wladimir Lênin. Stalin e seguidores eram seus fieis depositários.

 

Em 1952, Stalin deflagrou mais uma onda de terror contra a elite comunista atrás de traidores, dessa vez contra os médicos, o que ficou conhecido como o Complô dos Médicos. O real objetivo era eliminar os médicos da alta cúpula soviética que por décadas cuidaram dos “magnatas” do partido (como eram chamados!) e, que, portanto, sabiam demais sobre crimes cometidos, alguns, inclusive, com participação ativa deles como executores ou como acobertamento de laudos. Questionado por um dos chefes da Polícia Secreta sobre a validade das acusações, Stalin respondeu: “Nós mesmos seremos capazes de determinar o que é e o que não é verdade”. (p. 690, 2017)

 

Sebag Motefiore se interroga se Stalin acreditava mesmo nisso, e responde: “Sim, de forma apaixonada, porque era uma necessidade política, o que era melhor do que a mera verdade”. (p. 690, 2017)

 

A aplicação literal da completa amoralidade de Stalin ficou cristalizada na fala de um dos principais assessores, Lauvrenti Béria: “Quando nós, bolcheviques, queremos fazer algo, fechamos os olhos para todo o resto”. (p. 72, 2017) Não há espaço para considerações ético-morais que possam engendrar duvidas e hesitações.

 

Não surpreende o remorso devastador revelado pelas memórias de um militante que participou das campanhas violentas de coletivização forçada dos campos da Rússia e da Ucrânia: “Participei pessoalmente disso, percorrendo o campo, procurando os grãos escondidos [...]. Esvaziei os baús de armazenagem dos velhos, fechei meus ouvidos ao choro das crianças e aos gemidos das mulheres [...]. Estava convencido de que realizava a grande e necessária transformação do campo”. (p. 72. 2017)

 

Bem, parece que fica claro o contexto histórico no qual se originou a prática de deslocamento do significado verdadeiro das palavras de acordo com interesses ideológicos: a ascensão do comunismo mundial, com a Revolução Russa (1917) e Chinesa (1949).

 

Portanto, não é de estranhar quando, no Brasil de agora, palavras como “genocida” sofram um deslocamento proposital de significado para ser utilizada como arma política de partidos de esquerda, cujas raízes são stalinistas e maoistas! Socorrendo-me, mais uma vez, do bom e velho “Aurélio”, tem-se que “genocida” significa: “Aquele que tenta, ou destrói, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, ou religioso; cometendo crime contra a humanidade”. Busquei ainda o reforço do Google, e no Dicionário Online de Português, “genocida” é: “Pessoa que cometeu genocídio; quem deliberadamente ordenou o extermínio de um grande número de pessoas, de todo um grupo étnico ou religioso, de um povo, uma cultura ou uma civilização”.

 

Portanto, amigos leitores, classificar qualquer presidente ou primeiro-ministro dos diversos países que enfrentam a pandemia do Covid-19 como “genocida” é agir consciente (como militante) ou ingenuamente (por ignorância) no âmbito dessa tradição política que não respeita o significado semântico original das palavras e das realidades factuais constitutivas dos contextos históricos, propositadamente as distorcendo, sem nenhum pudor ético-moral, para que atendam aos seus planos de conquista do poder. Empiricamente, desafio: apontem um chefe de estado ou chefe de governo cujas ações, no enfrentamento deste vírus, se enquadrem nas definições de “genocida” constantes dos dicionários citados!

 

É evidente que o número de vítimas da pandemia assusta! Mas, infelizmente, é isto que também caracteriza uma pandemia. Aqui, a ciência da linguística nos auxilia a combater a demagogia política e a manipulação ideológica, ao esclarecer a confusão intencional do uso das palavras.

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