Prof. Dr. Geraldo Filho (UFDPar – 21/05/2020)
Não submeterei os leitores a uma retrospectiva da história chinesa, no entanto, vale lembrar que os chineses, como coreanos e japoneses, compartilham herança na qual se misturam genes e formas de viver (pensar, agir e sentir) de no mínimo 03 “espécies” do gênero “homo”: o erectus, o neandhertal e o sapiens. Isso, provavelmente, concedeu a estes povos orientais originalidade às vezes difícil de compreender e aceitar para outros de regiões diferentes, como os do ocidente.
Para um sociólogo profissional, que pesquisa biologia evolutiva e neurociência, as sociedades são organismos formados por populações de indivíduos que buscam diariamente maximizar as chances de sobrevivência, espalhadas pelos diversos ecossistemas do planeta. Isto significa que algumas terão mais sucesso e outras fracassarão nessa luta difícil, tudo dependerá de uma palavra mágica: adaptação.
As formas de viver com maior flexibilidade (resiliência) evolutiva construirão sociedades adaptadas às características do ambiente no qual se encontram, garantindo estabilidade a longo prazo para que esses povos possam criar a própria história. Nesta perspectiva, nada a estranhar diante de formas de vida exóticas que contrariam os padrões conhecidos por outros.
Assim, para compreender sociedades como a China se deve considerar que ela foi bem sucedida no decorrer de mais de 2 mil anos, durante os quais, e apesar dos conflitos internos, manteve a unidade e a identidade civilizatória do país sem se fragmentar, sucedendo-se dinastias imperiais cuja legitimidade era conferida pelo “Mandato Celestial”, concedido ao imperador para governar o mundo, isso mesmo o que você leu, o mundo! Povos próximos ou distantes eram naturalmente considerados bárbaros e vassalos, com os quais os chineses deveriam evitar contato, pois nada tinham a aprender com eles!
Com um pouco de imaginação o leitor perceberá que mesmo encerrando a fase imperial, em 1912, os governos que se alternaram até 1949, ano da revolução comunista – que inaugurou a estrutura de poder comandada por um partido único, em vigor até hoje – as lideranças chinesas nunca abandonaram o passado milenar, procurando reviver mediante encenação laica (secular) a sagrada estratificação hierárquica de comando da sociedade construída por séculos pelas famílias imperiais.
A imaginação controlada pelo conhecimento é ferramenta fundamental para o cientista de todas as áreas, pois o obriga a ver além da realidade aparente. Para isso ele tem de experimentar domínios diversos, como a literatura, o cinema e a música, por exemplo, que instigam a criatividade e a fantasia. Em geral a imaginação pode ser um guia para as interações sociais do cotidiano, principalmente se concebidas como dramatização teatral no palco da vida, o que ajuda a entender as intenções das pessoas por trás das atitudes tomadas, que podem prevenir erros de avaliação que comprometem destinos, do tipo quando alguém se apaixona pelo parceiro errado, por acreditar que ele era o “amor de sua vida”, etc.! Um olhar arguto e imaginativo observaria que a maior parte da teatralização fantasiosa do amor encobre uma intenção dominante elementar, o desejo por sexo!
Faz algum tempo me encontrava no bar de um grande amigo, como é comum a televisão estava ligada, transmitindo no momento competição de ginástica olímpica feminina da qual participavam atletas chinesas. Durante as provas notei que numa mesa próxima um sujeito vibrava e batia palmas para a performance das chinesas! Curioso, perguntei por que ele torcia tanto para elas e ele respondeu: porque são da China, e a China é comunista e ele era comunista! Ah, tá...! Com a resposta fiquei calado, afinal nada tinha com aquilo e qualquer um admira quem quiser mas... o episódio ficou martelando na minha mente!
Quer dizer que se eu sair por aí dizendo que sou Jesus Cristo as pessoas acreditarão só porque eu me autodeclarei a personificação humana do Criador?! Um indivíduo com pouco mais de argúcia e imaginação e menos simplório do que o sujeito do bar desconfiaria que a China não pode ser considerada comunista apenas porque a estrutura de poder que a governa ainda ostenta o nome de Partido Comunista da China.
Em primeiro lugar, pela teoria marxista clássica, dos dois, Karl Marx e Friedrich Engels, nem a Revolução Russa de 1917 e nem a Chinesa de 1949 poderiam ter acontecido, pois pela teoria eram sociedades agrárias e a precondição fundamental para uma revolução comunista é a sociedade ser industrial, pois sem este requisito não existiria o operariado das fábricas (o proletariado, a classe revolucionaria cuja missão histórica era construir um mundo novo!). Isto significa que Vladimir Lênin e Josef Stálin para a Rússia (depois URSS) e Mao Tsé-Tung para a China distorceram e aplicaram a teoria como bem entenderam! Se Marx e Engels tivessem presenciado esses eventos históricos talvez, e repito talvez, zelosos como eram pela ortodoxia da teoria por eles criada desaprovassem a ousadia heterodoxa, e mais, ficassem surpresos com as monstruosidades totalitárias geradas pela reinterpretação de suas ideias.
Em segundo lugar, nunca houve na história humana uma sociedade comunista para ser tomada como parâmetro de avaliação comparativa, método importante para cientistas de qualquer área! O que significa que Marx e Engels fizeram com sua teoria um exercício de especulação, sem base empírica! Assim, qualquer experiência social que se autodeclarasse comunista, como os russos e chineses fizeram, poderia reivindicar legitimamente a veracidade do conceito. Como consequência, o que se conhece como comunismo, ou o mais próximo dele (os fieis da esquerda professam que nunca houve comunismo real mas sim socialismo, primeira etapa para a tão sonhada e idealizada sociedade igualitária, que até hoje nunca foi alcançada!), foram as sociedades soviética (1917/1992) e chinesa (1949/1976), que deixaram legado de atrocidades terríveis como assassinatos, perseguições, fome e miséria para seus povos, que vêm procurando superá-lo desde então!
Em terceiro lugar, outra semelhança histórica une as experiências comunistas de Rússia e China (cujos efeitos se disseminaram pelas sociedades que embarcaram na aventura revolucionária comunista!): além de serem sociedades agrárias a revolução substituiu em ambas “impérios dinásticos por direito divino” por “impérios dinásticos seculares”. Depois de 1917 na Rússia e 1949 na China rapidamente o Partido Comunista da URSS e o Partido Comunista da China reorganizaram a velha estrutura hierárquica de poder, ferozmente absolutista e ditatorial, estabelecida há séculos na primeira e há milênios na segunda! Os títulos sagrados de Czar (ou César, romano) na Rússia e Filho do Céu, na China, foram substituídos pelo secularmente insosso, porém poderoso, Secretário Geral do Partido Comunista.
O aparato burocrático estatal que subiu ao poder nos dois países se fundiu com os partidos respectivos e garantiu, como partidos únicos (uma vez que todos os demais foram proibidos), a “sucessão dinástica” no âmbito dos quadros partidários. Sem nenhum pudor, Coréia do Norte e Cuba, outras aventuras comunistas, foram mais longe ao replicarem este padrão sucessório! Apesar de não terem um passado de tradição imperial importante (ou nenhum passado desse tipo, caso de Cuba) as ditaduras criminosas que assumiram estabeleceram a “sucessão hereditária por sangue”, os Kim e os Castro, o que denota de fato, quando se usa a imaginação e a astúcia para ver por trás da encenação, o que realmente motiva os revolucionários comunistas!
Com 75 anos de socialismo/comunismo a Rússia Soviética desmoronou em 1992! No entanto, a China continuou, mesmo que como sociedade socialista/comunista tenha terminado na pratica em 1976, com a morte de Mao Tsé-Tung! Como foi possível continuar se autodenominando comunista (governada pelo Partido Comunista da China), enquanto as demais que fizeram experiências políticas do mesmo tipo estavam afundando e desaparecendo na pobreza e subdesenvolvimento econômico?!
Para compreender é necessário evocar a tradição chinesa de busca de preservação da sociedade e do Estado a longo prazo, por meio de estratégias que evitam conflitos internos e confronto direto de duração elevada com inimigos externos (inspiradas no complexo jogo de estratégia “go”, chinês), apostando no alto custo para os adversários em recursos militares, econômicos e humanos para conquistar e controlar uma imensidão territorial e populacional como a China.
A milenar tradição política, administrativa e diplomática da China, treinada e aperfeiçoada pelo mandarinato (aparato burocrático de governo) na rígida ética confuciana, que preconizava uma sociedade hierarquizada e disciplinada, na qual a vida dos indivíduos deveria convergir – a partir do correto cumprimento dos deveres de cada um – para o bem-estar da sociedade e do Estado, conduziu tanto a superação dos conflitos internos (a invasão mongol, que gerou a dinastia Yuan, nos séculos XIII e XIV) como as ameaças estrangeiras (as guerras contra os europeus, no século XIX), ainda que esse processo demorasse décadas ou séculos.
Com efeito, meros 27 anos de desastrada “engenharia social” do socialismo/comunismo sob o comando de um psicopata, durante os quais se cometeram verdadeiras loucuras – como a “guerra dos pardais”, na qual os chineses foram incitados a matar os pobres pássaros porque Mao se “convenceu” de que eles comiam as sementes e eram os culpados pelos constantes desastres das colheitas, criando terrível desequilíbrio ecológico, pois os insetos, sem o predador natural, se multiplicaram em pragas e agravaram o problema da fome, ceifando a vida de milhões (nunca passou por sua mente insana que as causas estavam na violenta política de desapropriação de terras e coletivização forçada das propriedades rurais); ou a “guerra contra os quatro velhos” (também chamada de Revolução Cultural), na qual a juventude foi lançada contra todos aqueles identificados com as “velhas ideias”, “velha cultura”, “velhos costumes” e “velhos hábitos”, incluindo pais e professores, que deveriam ser denunciados às autoridades se persistissem nos comportamentos antiquados, resultando em milhões que foram mandados para campos de “reeducação” dos quais muitos jamais voltaram (Mao nunca entendeu que uma sociedade milenar não modificaria a estrutura mental abruptamente; a tomada do poder foi em 1949 e ele desencadeou a Revolução Cultural em 1966, portanto 17 anos depois, menos de uma geração completa, manipulando cérebros imaturos, à procura de afirmação diante do líder supremo, uma receita para trágicas consequências) – representam um período de tempo insignificante para a longa história chinesa, que diante de desafios a ser enfrentados, como a psicopatia maligna e destrutiva de um líder como Mao (que levou a China a permanentes tensões internas e externas), soube se recompor, por meio da tradição da velha burocracia imperial dos mandarins, redivivos como membros do aparato administrativo do Partido Comunista da China.
Chou En-Lai e Deng Xiaoping foram os ícones dos novos mandarins seculares que garantiram o reencontro da história chinesa com o velho ideal confuciano de estabilidade da sociedade e do Estado. Eles chegaram ao poder juntos com Mao Tsé-Tung, sempre exerceram funções importantes de organização e estratégia de governo, porém não compartilhavam da imaginação perigosamente delirante e criadora de instabilidade social de Mao, pelo contrário! Mao temia-lhes o prestigio e influência nos escalões civis e militares do PCC, por isto os mantinha próximos e sob intensa vigilância, alternando perseguições e reabilitações, punições severas (prisão; humilhação pública; atentados aos familiares, como a tentativa de morte do filho de Deng, que ficou paraplégico) com premiações festejadas.
Contudo, diante da bipolaridade tresloucada de Mao, comum aos ditadores psicopatas severos, que desenvolvem traço de personalidade característico da neurose de perseguição, desconfiando de tudo e todos (Hitler, Stálin, Fidel, os Kim e outros, na África existe uma coleção!), Chou e Deng, no exercício das melhores qualidades do mandarim confuciano, permaneceram impávidos, sacrificando as vidas pessoais com o intuito de reduzir os danos nefastos para a população chinesa consequência das políticas do “grande timoneiro”, como Mao foi cognominado, mesmo que isto ocorresse a médio e longo prazo, e aqui falo das décadas posteriores a 1976 (morte de Mao), até se chegar à China atual. Mas o que são poucas décadas numa história confuciana de mais de dois milênios?!
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