29 de abr. de 2016

Uma paralaxe sobre a evolução humana

Prof. Geraldo Filho (29/04/2016)

Em aula recente ministrada por mim, a convite do Prof. Dr. André Haguette, no Doutorado em Educação, na UECE-Fortaleza, ao abordar a relação entre evolução do cérebro com a evolução humana, estimulei os alunos a fazer um exercício de paralaxe sobre a observação das sociedades. A paralaxe é o deslocamento aparente de um objeto de acordo com a modificação do ponto de vista do observador. O objetivo era, já que a aula fazia parte da disciplina Epistemologia da Ciência (estudo dos pressupostos do conhecimento científico utilizados para construir uma teoria), olhar o comportamento dos humanos sob a perspectiva de três disciplinas: biologia evolutiva, sociobiologia (privilegiando a psicologia evolutiva) e a neurociência.
O primeiro choque derivou do deslocamento do confortável ponto de vista observacional que enxerga o homem como um ser único, que se emancipou da natureza por meio da razão e da cultura. Não é fácil fazer este primeiro deslocamento, percebi nos rostos dos alunos (a maioria professores universitários espalhados pelos campi da UECE no estado) o incômodo e a ansiedade, afinal se aprende desde tenra idade que o homem é um ser racional, cuja centelha da vida foi concedida por Deus.
No entanto, um dos prazeres da ciência é a possibilidade de caminhar por mundos desconhecidos e descobrir coisas ou pontos de vista novos! Assim, convidei os alunos (e agora convido os leitores) para olharem as sociedades como “ninhos humanos”, nos quais o grau de complexidade (do menor ao maior) converge para satisfazer as exigências de três funções: a nutrição (economia dos recursos alimentares), a proteção (a segurança dos indivíduos e do grupo em geral) e a reprodução (todos os meios utilizados que permitem indivíduos e grupos existir e transmitir sua herança genética ao longo do tempo: família, educação, política, religião, etc., em última instância, tudo o que se chama comumente de cultura).
Ora, a espécie humana neste sentido não é única, pois só o que existe são “ninhos” construídos (o nome técnico é processo de “nidificação”) por espécies as mais diferentes, dos grandes primatas, como os chimpanzés e gorilas; aos felinos, como os leões e o gatinho da sua casa; até os insetos “sociais”, como as formigas, as abelhas e os cupins.
Como consequência, o mínimo que se pode concluir é que como espécie nós compartilhamos com as demais espécies do reino animal características funcionais fundamentais, sem as quais não sobreviveríamos. Portanto, não somos nem singulares nem tão diferentes delas.
Avançando um pouco mais na observação, o segundo choque decorreu da descoberta de que algumas características que imaginávamos exclusivamente humanas na verdade foram ensaiadas e aprimoradas por espécies milhões de anos mais antigas do que a nossa. A história evolutiva do gênero homo tem mais ou menos 2 milhões de anos; a da espécie sapiensmais ou menos 140 mil anos. De acordo com Richard Dawkins, em A Grande História da Evolução (2009), a história evolutiva (filogênese) de qualquer formiga, cupim ou abelha que você encontre por aí remonta há uns 120 milhões de anos.   
Estes três insetos comuns, além de outros, são chamados “sociais” porque eles desenvolveram modos de vida marcados pela convivência harmoniosa e hierárquica de milhões de indivíduos numa mesma cidade, desculpem “ninhos” (formigueiros, cupinzeiros e colmeias); a convivência harmoniosa e hierárquica de milhões de indivíduos de gerações diferentes (jovens, adultos e velhos); a convivência de milhões de indivíduos anônimos e desconhecidos entre si mas que se protegiam externamente ao tempo em que garantiam a perpetuação da espécie, mesmo que ao sacrifício reprodutivo de alguns, como os “operários e soldados”. Edward Wilson, no livro A Conquista Social da Terra (2013), o fundador da sociobiologia, resumiu esse modo de vida com o conceito de eu-socialidade, ou seja, a boa socialidade.
Provavelmente, a eu-socialidade possibilitou, após milhões de anos de evolução, as primeiras manifestações de sentimentos como a afetividade e o amor, originários da experiência das emoções (também compartilhadas com os animais) como a alegria e a tristeza.
Mas, o que é isto?! Os animais também têm emoções e a afetividade e o amor se originam nestas emoções?! Eis o terceiro choque! Sim, compartilhamos também as emoções com os animais, descoberta feita por Charles Darwin, exposta nos pouco lidos A Origem do Homem e a Seleção Sexual (1871) e A Expressão das Emoções nos Homens e nos Animais (1872).
Emoções fundamentais como tristeza, alegria, raiva, medo, surpresa e nojo evoluíram com as espécies animais e a partir delas apareceram gradações diversas como a euforia, a depressão, a ira, o pavor, etc. O importante a saber é que todas contribuíram e funcionam de alguma maneira para garantir a sobrevivência e o bem-estar de um ser vivo, na busca permanente pelo equilíbrio (homeostase) ao ambiente interno e externo do indivíduo.
É evidente que somente com a existência de uma máquina complexa e sofisticada como o cérebro humano a expressão das emoções pôde tornar-se sentimento e tomar a forma de conceito. Foi isto que levou o neurologista Antônio Damásio, no livro Em Busca de Espinosa (2009), a considerar os sentimentos a sombra das emoções.
Gosto de exemplificar este momento misterioso e complexo da evolução do cérebro e do homem, a elaboração das emoções por meio dos sentimentos que passam a representá-los como conceitos, utilizando uma alegoria metafórica: o cachorrinho de estimação da sua casa ou do seu amigo “divide” com você a alegria e a tristeza de um momento, porém ele não “sabe” que está alegre ou triste. A eventualidade desta condição de consciência sobre o “estado de si mesmo” foi o que possivelmente desencadeou o fiat lux (“nascimento”) da mente, criando o que se conhece como a condição humana.
Ou seja, do ponto de vista da evolução do cérebro e do homem, a mente aparece como o resultado evolutivo da espécie, na transição das emoções para os sentimentos, o que segundo a biologia e a psicologia evolutiva defendida por Steven Mithen, em A Pré-História da Mente (2002), corresponde a uma arquitetura cerebral que deixa de ser formada por uma inteligência geral – comum aos animais, que têm um nível de racionalidade elementar e generalista, mas que, no entanto, lhes permite sobreviver em sintonia com seu meio – e passa a se constituir por vários módulos de inteligências especializados (linguístico, espacial, musical, lógico-matemático, corporal, intrapessoal, social, etc.), que em conjunto com o módulo da inteligência geral interagem intensamente, sendo capazes de representar qualquer coisa, até mesmo o que não existe, como mundos fantasiosos, formando o que Dan Sperber chamou de Módulo Meta-Representacional (MMR), em “The modularity of thought and the epidemiology of representations” (1994).
O momento descrito acima, o aparecimento evolutivo da mente, divide desde René Descartes as teorias sobre o cérebro e a mente, opondo dualistas (cérebro e mente são coisas distintas, sendo que a mente foi concedida pela criação divina e constitui a expressão da alma ou espírito) e os monistas (cérebro e mente são a mesma coisa, sendo que a mente é apenas um fenômeno complexo e altamente sofisticado do cérebro, cujos mecanismos a neurociência desvendará ao longo das pesquisas em andamento).
Há uma terceira posição, a dos que acreditam que o problema fundamental “cérebro-mente” não é possível de ser compreendido e resolvido pelo cérebro humano, simplesmente porque o cérebro evoluiu para garantir funcionalmente a vida no planeta de uma espécie complexa como a nossa, porém não para “pensar” sobre si mesmo e sobre o sentido da existência (de onde eu vim; para onde vou), tampouco sobre a origem do universo e o seu destino (o que existia antes; o que existirá depois; o que é o nada). São os chamados “new-misterians”, por falta de melhor nome, e eu chamaria de “agnósticos”, sendo um dos mais conhecidos o psicólogo evolutivo canadense Steven Pinker, cujo livro mais famoso é Tábula Rasa (2004).
É perceptível que aqui caminhamos próximo a fé, e como sociólogo sei do multivariado público que recebo na sala de aula. Assim não poderia deixar de apresentar a contribuição do grande jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, que buscou conciliar evolução com a criação, encontrando um sentido divino para a evolução humana, cuja finalidade é a reconciliação do homem com Deus, exposta em O Fenômeno Humano (1965). Com efeito, o surgimento da mente representou um momento significativo desse percurso em direção ao divino. O que não se pode negar – e Chardin, como paleontólogo que era, sabia disso – era a evolução darwiniana, fartamente sustentada nas provas fósseis. O problema, para Chardin e sua teoria da evolução teleguiada, é que as provas fósseis e a história geral das sociedades indicam que as sociedades também podem involuir, colocando em risco a existência da espécie. Esta discussão está em aberto, para sermos honestos, pois a filogênese da espécie sapiens ainda é muito precoce para que se possam deslindar tendências de longo prazo.
O certo é que a mente como conhecemos emergiu por volta de 70 ou 80 mil anos antes de Cristo, um processo chamado de a Grande Revolução Cognitiva, cuja síntese pode ser explicada pela capacidade adquirida por cada indivíduo de ter sua própria história, permanentemente atualizada por uma memória de longo prazo, que lhe informa sobre o que fazer diante de situações corriqueiras do cotidiano (memória de curto prazo), ao mesmo tempo em que ambas ajudam a projetar o futuro (Módulo Meta-Representacional), antecipando, portanto, o que ainda não existe, através de sofisticadas representações abstratas, como, por exemplo, uma viagem a ser realizada na próxima estação primaveril; ou como será a vida em um mundo paradisíaco após a morte.
Com efeito, nem a racionalidade é o divisor entre a espécie humana e as demais espécies e nem tampouco aquilo que se convencionou chamar de cultura. A racionalidade lentamente evoluiu nos vários parentes ancestrais do gênero homo, como o habilis, o erectus, o neandhertal, etc. até chegar ao sapiens, aqui se manifestou a singularidade até agora (e talvez jamais!) inexplicável da mente, ao tempo em que explodiu uma intensa capacidade de racionalização cognitiva do mundo. A cultura é somente a expressão dessa complexa racionalização cognitiva, porém ela já existia há milhões de anos antes de nós, nos primeiros machados de pedra do homo habilis, são os instintos elaborados como expressões culturais, que orientam como atender as necessidades funcionais de nutrição, proteção e reprodução; como existe hoje na racionalidade elementar dos chimpanzés.
Um desafio para o futuro é pensar uma sociologia dos cyborgues (cyber = cibernéticos + orgs = organismos), lembrando o que aconteceu conosco quando da grande Revolução Cognitiva. Há 70 e 80 mil anos AC, uma quantidade substancial de informações provavelmente pressionou o cérebro dos sapiens do paleolítico a pensar mataforicamente o seu mundo, imaginando alegorias para tudo a sua volta.
O vertiginoso avanço da neurociência e da ciência da informação vem produzindo complexos protótipos de inteligência artificial. Isto significa a construção de módulos de inteligência capazes de replicar o cérebro humano. O objetivo é chegar a um cyborgue completamente inorgânico, como um robô – um cyborgue com partes orgânicas e inorgânicas é um androide, p. ex., quando alguém coloca um chip no cérebro para guiar uma prótese. A questão relevante é: Em algum momento, a quantidade de informações recebidas por estes módulos de inteligência artificial podem funcionar como pressão seletiva a ponto de – como a 70 e 80 mil anos atrás – trabalharem em intensa interação representacional, dando vida a uma mente?
O cinema de ficção científica projeta algo semelhante para o futuro, o que não deixa de ser instigante – não esqueçamos que muito do gadgets tecnológicos comuns à vida atual foram previstos em Jornada nas Estrelas. Filmes como Blade Runner e Eu Robô, p. ex., têm como enredo o aparecimento de cyborgues com consciência de si mesmo como individualidade, a mente, exatamente provocada pelas suas complexas interconexões “neurais” artificiais. Porém, há uma série que, segundo, penso foi ao cerne da questão existencial humana: Batlestar Gallactica. Na série, numa galáxia distante da nossa, mas habitada por uma espécie igual à humana, os robôs, chamados “cylons”, adquirem consciência de si e se voltam contra seus criadores humanos, considerados predadores destrutivos. Mas, o ápice ocorre quando os robôs “cylons”, revelando a singularidade da sua mente, criam o seu próprio Deus. Alguma semelhança conosco?!

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