Outro dia estava eu
conversando com um jumento sobre o destino sombrio dos excluídos. Há de parecer
estanho e até engraçado, mas só nós, escritores e artistas temos essa
facilidade e prerrogativa de nos entendermos com os animais sem que os outros,
ditos homens, daqui de fora entendam o que está acontecendo e muito menos
participem da conversa. É coisa reservada. É conversa tão comprida que nem a
estrada daqui da Parnaíba até Piracuruca.
E fomos nos lembrando de
tudo em quanto foi passagem. Umas boas e outras nem tanto. Mas posso dizer
depois dessa longa conversa que o jumento anda, como se dizia antigamente,
contrariado com o governo da presidente Dilma Rousseff. Não é pra menos. Depois
de anos, décadas e até séculos, mudanças do regime da monarquia pra o
republicano, golpes e ditaduras, tempos bons ou tempos difíceis o meu amigo
jumento está na lista dos excluídos. Eu não tirei e nem tiro a razão dele não.
Quando a gente fica de idade todo mundo vira as costas pra gente.
Mas voltando à longa e
proveitosa conversa entre eu e o meu amigo jumento, ele me disse que anda
deveras aborrecido com os homens. Onde já se viu, depois de tantos anos
servindo, se dedicando, fazendo de um tudo sem reclamar, ser deixado largado no
meio do tempo feito papel de embrulho que não serve mais pra coisa nenhuma? Mas
tá. Dava despesa, comia e bebia muita água. Era lerdo, emburrado,
inconveniente, saliente nas horas mais impróprias. Mas carregou de um
tudo.
Fez mudança de casa,
carregou mulher pra casar e pra parir, menino pra batizar. Levou dindinha pra
se consultar na cidade. Foi montaria de muito namorado. Foi até alcoviteiro.
Carregou mandioca e lenha pra casa de farinha. Carregou padre e mulher de
idade. Foi até carro funerário. Muita caminhada em busca de água. Agora isso
não conta? Bastou o antigo dono colocar umas moedinhas no bolso e foi trocado
por uma moto ou uma picape. No mínimo duas ancoretas no lombo. Carregava de um
tudo sem dar um piu.
Em tempo de fartura
carregou até o que não podia. Em tempo de seca carregou aquilo que sobrou da
casa do dono. Agora tá feito negro depois da abolição, sem dono e sem serviço. Ninguém
quer. Agora dá despesa. Agora é imprestável. “Olhe, seu Padinha, não queira saber
o que é a ingratidão! Eu como não sou homem e muito menos de reclamar por nada,
não sou de andar batendo em porta de políticos, não tenho benefício do Bolsa
Família e nem do Minha Casa, Minha Vida. Só tenho o sol e a chuva que Deus dá”,
disse..
Na cidade, quando ainda
vou de vez em quando, sou olhado de rabo de olho e por cima do lombo. Tratado
como um incômodo no meio dos carros. Menino hoje não me conhece mais. Mas servi
de brinquedo pra ele. Estes dias fiquei sabendo que uns irmãos meus andaram
passando um mau bocado em Parnaíba. Presos num terreno da prefeitura, sem água,
sem comida e naquele terror de sol. Foi uma tal de ongue que meteu a boca no
mundo. Fizeram o maior alarme em tudo quanto foi portal e blogue. No outro dia
andou por lá uma vereadora do PT, que se condoeu da situação de nós, seu
Padinha! Mas é essa a nossa sina nos dias de hoje.
Eu, Padinha, fiquei
ouvindo toda aquela reclamação de mão no queixo. Como é que pode se chegar a
uma situação dessas? Agora sem serventia o jumento é motivo de tudo que é piada
de mau gosto. Jumento trabalhou muito e sem descanso. Nunca se lembra, disse,
ter ouvido um muito obrigado! Só reclamação de que andava devagar e era
preguiçoso! E ás vezes sendo chamado de burro! Não que tenha nada contra essa
parentela, mas é muita injustiça!
E perguntei se eles
tinham algum advogado ou sindicato. E adianta? Quem é que se interessa hoje por
jumento? Depois que a gente fica velho, e mais agora com essa concorrência das
motos, ninguém quer nem passar perto. Não vê o senhor, seu Padinha, a situação
dos refugiados da Síria, do Iraque, da Líbia na Europa? Eu só ouço falar. Aqui
na Parnaíba as coisas sempre são de muita dificulidade pra quem não tem nada!
Aqui na Parnaíba tem sindicato de carroceiros, mas de jumento e de burro, pelo
que sei, nunca ha vera de ter. Dá muita confusão e desentendimento. Já imaginou uma briga durante uma assembleia? Ia ser coice e mordida pra em tudo o que é
direção, seu Padinha!
Tentei confortar o
amigo. Vocês eram pra ser nome de rua, avenida, com estátua em praça pública.
Até nome de repartição de prefeitura. Mas não. Ninguém se lembra. Deixa é no
relento, sem água e sem capim ou até mesmo uma mucheia de milho. Aquela
conversa iria longe. Eu vendo que não saía desse mar de queixas do jumento fui
tratando de me despedir. Desci a rua e tomei o rumo de casa. Eu, Padinha, pelo
menos ainda tenho pra onde voltar...
Por Pádua Marques
Jornalista e Escritor
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