21 de jun. de 2015

Da cajuína aos ensopados de carne de bode, conheça a comida sem frescura do Piauí




Capote é o nome piauiense para a galinha d’angola. O arroz de capote é tradicional no estado Foto: Ana Branco / fotos de ana branco



Capote é o nome piauiense para a galinha d’angola. O arroz de capote é tradicional no estadoANA BRANCO / FOTOS DE ANA BRANCO
TERESINA - Cidade de alma portuguesa, o Rio já produziu tripas à moda do Porto e dobradinhas de respeito, que o digam os clientes do Penafiel. Nos últimos anos, no entanto, tem sido difícil encontrar miúdos nos cardápios cariocas.
Já no interior do Nordeste, a conversa é outra: os miúdos continuam sendo ingredientes fundamentais na alimentação diária. É o caso do Piauí, estado cuja culinária permanece desconhecida para a maioria dos brasileiros. Seja sincero, o que você sabe a respeito?
Pois basta um passeio pelos mercados tradicionais de Teresina para se perceber a importância das vísceras e carnes menos nobres. No Mafuá, o mais concorrido deles, há carcaças de bode penduradas ao lado de cabeças de porco e tripas de boi. Nada é refrigerado e o cheiro forte da carne domina o ambiente. Nos corredores lotados, a procura por esses ingredientes é grande; antes mesmo da hora do almoço uma parte considerável da mercadoria já foi vendida. Explica-se.
É com os miúdos de bode ou carneiro que se faz a panelada, o ensopado que está na capa desta edição. O caldo, encorpado e gorduroso, lembra de longe a dobradinha portuguesa — mas sem os feijões, já que come-se a panelada com arroz e pirão de leite. A “fressura” (conjunto de traqueia, pulmão, rins e fígado) de carneiro ou bode é usada no preparo do sarapatel, mais uma receita portuguesa adaptada à cultura sertaneja. Tradicional no Alentejo e no Minho, o sarapatel pode ser facilmente encontrado no Piauí e no sertão de Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Bahia. Além das vísceras, é preparado com sangue coalhado cortado em pedaços. A buchada (vísceras de bode fervidas, temperadas e cozidas dentro de bolsas feitas com o estômago do bicho) é outro prato popular no Piauí e nos estados vizinhos no Nordeste.
CAJUÍNA PARA ALIVIAR O CALOR
Essas e outras receitas piauienses (o quibe do sertão, feito com aipim e carne de sol é uma felicidade) são servidas no Favorito, restaurante em Teresina cuja cozinha é comandada há 10 anos por Carlos Augusto. Lavador de pratos no Copacabana Palace na adolescência, ele passou por cada função que existe dentro de um restaurante até se tornar a principal referência em Teresina quando o assunto é... miúdos, claro.
— Foi nesse dia a dia, nesses anos todos, que aprendi a cozinhar. Há chef que chega aqui e nunca viu um miúdo, não sabe limpar um filé. Ficam mais perdidos do que filho de rapariga em Dia dos Pais — brinca Carlos, que ensina o segredo para tirar o cheiro forte da carne de bode. — É só usar cachaça.
Mas nem só de miúdos vive Teresina. Pode-se facilmente afirmar que a culinária da capital piauiense se sustenta em um tripé: miúdos,caju e capote.
O caju, assim como acontece nos vizinhos Ceará e Rio Grande do Norte, é rei no Piauí. Com ele, faz-se de tudo, literalmente: há cachaça, vinho, cerveja, licor, doces, mel, rapadura, espumante, farinha... Os irmãos Lenildo e Verônica de Lima e Silva são entusiastas da fruta e estão na linha de frente de experimentos cuja cadeia de produção envolve centenas de pessoas em projetos de agricultura familiar. No Piauí, o caju é “o pão nosso de cada dia”.
Lenildo comanda a Império Doce, que produz uma série de derivados do caju, incluindo todos os mencionados acima, além de uma rede de produção da cajuína,bebida que é considerada patrimônio cultural do Piauí (clarificada e feita a partir do suco do caju, é a solução refrescante para o calor abrasador de Teresina). A cajuína já até deu nome à canção de Caetano Veloso (“A cajuína cristalina em Teresina”). Lenildo advoga a favor das qualidades da fruta:
— O caju tem mais antioxidantes do que a acerola. E homem que come o melaço de caju não precisa de Viagra!
Já Verônica inventa receitas com caju que ensina em cursos ou prepara sob encomenda. Ela já criou lasanha, antepastos, estrogonofe e empadas à base da fruta e de sua castanha. Mas nenhum desses suplanta o sucesso do vatapi, o vatapá do Piauí. No lugar do camarão, vai a carne do caju.
— Ele tem que estar maduro para ser usado nas receitas — ensina Verônica. — Assim, tem menos acidez.
ARROZ QUEIMADO COM OVO
Capote é o nome local para a galinha d’angola, o terceiro ingrediente chave da cozinha piauiense. Nesse quesito, Maria de Jesus de Sá é soberana. Seu restaurante, o Longá (“É o nome do rio de Barras, cidade onde nasci”) existe há 26 anos e, em breve, será reaberto numa chácara nos arredores de Teresina. Jesus, como é conhecida, serve capote em forma de arroz (uma delícia!), ao molho pardo ou como ela inventar.
— A capote criada livre é mais gostosa, basta cozinhá-la na pressão e fazer o mesmo tempero usado no preparo da galinha caipira — diz ela, explicando que os piauienses costumam comer o arroz que fica no fundo da panela, queimadinho, com o ovo da capote (que tem gema mais escura e sabor mais marcante). — É só estourar a gema em cima do arroz. A alegria está nas pequenas coisas — completa Jesus.
Os sabores do Piauí — e de todos os estados brasileiros — estão sendo documentados pela Expedição Fartura Gastronomia (farturagastronomia.com.br), que há quatro anos documenta as tradições alimentares do Brasil, transformando o material recolhido nas viagens em documentários e livros.
A equipe do ELA Gourmet viajou a convite da Expedição Fartura Gastronomia.


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