19 de mai. de 2014

O BRINQUEDO ROUBADO


                                            Humberto de Campos

                A nossa mudança de Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para PARNAÍBA, onde éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo, na formação do meu caráter. Eu conhecia intimamente a inferioridade da minha condição. No meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do necessário e do supérfluo, doía--me o tratamento que me davam, quando era encontrado sozinho, e que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu era um menino feio, retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia alheia. E como não havia um espírito estranho e inteligente que procurasse estabelecer o contato do meu coração com o mundo, ia se formando na minha alma um surdo sentimento de revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as desigualdades estabelecidas pelo Destino.
Foi a noção dessa inferioridade clamorosa que me levou à prática do primeiro ato reprovável, em que o castigo severo contribuiu, apenas, para fixar no meu espírito a extensão daquela injustiça.
Eu fui um menino que não possuía, parece, jamais um brinquedo delicado. É provável que meu pai, nas suas viagens ao Maranhão, me levasse alguma lembrança desse gênero. Mas eu o perdi aos seis anos, e depois de órfão, minha mãe não podia dispender qualquer quantia, mesmo insignificante, com uma gaita, um boneco ou um pandeiro. No meu aniversário, ou no de minha irmã, seu brinde consistia em servir o nosso almoço fora da mesa, improvisando um “banquete” sobre um caixão de querosene, coberto com uma toalha de rosto. Nesse dia, comíamos em pires, levados à condição de pratos da nossa festa. Certa vez houve, mesmo, um pouco de “vinho”, preparado com água, vinagre e açúcar, e que enchia um pequeno vidro de “Xarope de Cambará”. Minhas distrações de infância, desde que chegamos a PARNAÍBA, limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha pernas e chifres para a formação de boiadas; à fabricação de arapucas para apanhar as rolas mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel que eram o maior encanto das minhas tardes vadias. Às vezes, quando encontrava um lápis ao alcance da mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em cada tijolo do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas paisagens à frente ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à porta. Houve também uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados se voltaram para os carretéis de linha. Chequei a possuir cerca de duzentos, brancos uns, pretos outros. Constituíam dois exércitos, comandados pelos generais, que eram os carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os militarmente para a batalha, e, com um limão, derrubava-os a tiros de artilharia, ora de um lado, ora de outro. Entre esses carretéis alguns havia que eram verdadeiros heróis; entravam em seis ou sete combates seguidamente, e não caíam. O limão respeitava-os como as granadas a Bonaparte. Se há um Cornélio Napote, no mundo dos carretéis vazios, alguns dos meus devem ter o seu nome na história dos grandes capitães. Terminadas  porém as lutas a que os submetia, eu enfiava os meus dois exércitos em um barbante, e pendurava-os num prego do alpendre. Fazia, em suma, com os meus soldados o que fazem com os seus os políticos, depois de servidos... Todos os meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de menino pobre. Nenhum vinha da loja.
É de imaginar, pois, o alvoroço que me assaltou quando, um dia, tive sob os olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia ter oitos anos e estava com minha mãe em visita, na casa de um dos meus tios, quando, uma tarde, mandaram pedir no estabelecimento comercial de Pires, Almeida & Cia., que ficava próximo, alguns brinquedos, para escolher. Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias deles, e todas as crianças afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A criada voltou com a encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa maravilhosa. Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios – um sortimento capaz de revolucionar Liliput. Custava  400 réis cada um.
Olhos ávidos, coração batendo forte, eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as mãos venturosas da minha prima e do meu primo pequenos. Ninguém se lembrou de mim. Ninguém se apercebeu da minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu que ali estava um menino órfão, mais infeliz que as outras crianças, e que por isso mesmo, precisava mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos os dois brinquedos, fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira na sala de jantar, enquanto ia ao interior da casa.
Quando ela saiu para ir à loja com a sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se eram os outros brinquedos que me atraíam, ou se era o remorso, a consciência da culpa que me arrastava. Ia como um autômato. Ia como quem marcha solto,  mas sem poder fugir, para o lugar em que se levanta o patíbulo. Chegados à loja, o comerciante derramou a caixa de brinquedos sobre o balcão.
-                              Ficaram com dois – informou a criada - entregando os oitocentos réis.
-                              Dois não; três... – declarou o dono da loja. Recontou os brinquedos e insistiu:
-                              Falta um... Diga lá que falta um...
         Voltamos. O coração batia-me como se quisesse vir à boca tomar fôlego. Eu devia estar lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha tia. E todos os olhos se voltaram, de pronto, para o menino órfão.
         Não me recordo, hoje, que foi que aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino carro pintado de vermelho, que havia escondido atrás da porta. Apanhei, com certeza, a minha surra. Fui apontado sem dúvida às crianças felizes e que tinham pai, como um menino mau, e de costumes tristes. E o brinquedo foi restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre um tapete, no momento de abrir a caixa.
         Foi esse, na minha vida de criança, o único brinquedo bonito, e de loja que possuí. Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentosa. Festa de alma que se tornou agonia.

         E que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo,  que eu dissimulo assustadamente no coração, e que, no entanto, descobrem e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele?

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