Humberto
de Campos
A
nossa mudança de Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para PARNAÍBA, onde éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo, na
formação do meu caráter. Eu conhecia intimamente a inferioridade da minha
condição. No meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do
necessário e do supérfluo, doía--me o tratamento que me davam, quando era
encontrado sozinho, e que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu
era um menino feio, retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia
alheia. E como não havia um espírito estranho e inteligente que procurasse
estabelecer o contato do meu coração com o mundo, ia se formando na minha alma
um surdo sentimento de revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as
desigualdades estabelecidas pelo Destino.
Foi a noção dessa inferioridade
clamorosa que me levou à prática do primeiro ato reprovável, em que o castigo
severo contribuiu, apenas, para fixar no meu espírito a extensão daquela
injustiça.
Eu fui um menino que não possuía,
parece, jamais um brinquedo delicado. É provável que meu pai, nas suas viagens
ao Maranhão, me levasse alguma lembrança desse gênero. Mas eu o perdi aos seis
anos, e depois de órfão, minha mãe não podia dispender qualquer quantia, mesmo
insignificante, com uma gaita, um boneco ou um pandeiro. No meu aniversário, ou
no de minha irmã, seu brinde consistia em servir o nosso almoço fora da mesa,
improvisando um “banquete” sobre um caixão de querosene, coberto com uma toalha
de rosto. Nesse dia, comíamos em pires, levados à condição de pratos da nossa
festa. Certa vez houve, mesmo, um pouco de “vinho”, preparado com água, vinagre
e açúcar, e que enchia um pequeno vidro de “Xarope de Cambará”. Minhas distrações
de infância, desde que chegamos a PARNAÍBA, limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha
pernas e chifres para a formação de boiadas; à fabricação de arapucas para
apanhar as rolas mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel que eram o
maior encanto das minhas tardes vadias. Às vezes, quando encontrava um lápis ao
alcance da mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em
cada tijolo do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas
paisagens à frente ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à
porta. Houve também uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados
se voltaram para os carretéis de linha. Chequei a possuir cerca de duzentos,
brancos uns, pretos outros. Constituíam dois exércitos, comandados pelos
generais, que eram os carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os
militarmente para a batalha, e, com um limão, derrubava-os a tiros de
artilharia, ora de um lado, ora de outro. Entre esses carretéis alguns havia
que eram verdadeiros heróis; entravam em seis ou sete combates seguidamente, e
não caíam. O limão respeitava-os como as granadas a Bonaparte. Se há um
Cornélio Napote, no mundo dos carretéis vazios, alguns dos meus devem ter o seu
nome na história dos grandes capitães. Terminadas porém as lutas a que os submetia, eu enfiava
os meus dois exércitos em um barbante, e pendurava-os num prego do alpendre.
Fazia, em suma, com os meus soldados o que fazem com os seus os políticos,
depois de servidos... Todos os meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de
menino pobre. Nenhum vinha da loja.
É de imaginar, pois, o alvoroço que me
assaltou quando, um dia, tive sob os olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia
ter oitos anos e estava com minha mãe em visita, na casa de um dos meus tios,
quando, uma tarde, mandaram pedir no estabelecimento comercial de Pires,
Almeida & Cia., que ficava próximo, alguns brinquedos, para escolher.
Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias deles, e todas as crianças
afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A criada voltou com a
encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa maravilhosa. Eram pequenos
brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de verde ou de vermelho:
carruagens, bondes, locomotivas, navios – um sortimento capaz de revolucionar
Liliput. Custava 400 réis cada um.
Olhos ávidos, coração batendo forte,
eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as mãos venturosas da minha prima
e do meu primo pequenos. Ninguém se lembrou de mim. Ninguém se apercebeu da
minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu que ali estava um menino
órfão, mais infeliz que as outras crianças, e que por isso mesmo, precisava
mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos os dois brinquedos,
fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira na sala de jantar,
enquanto ia ao interior da casa.
Quando ela saiu para ir à loja com a
sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se eram os outros brinquedos que
me atraíam, ou se era o remorso, a consciência da culpa que me arrastava. Ia
como um autômato. Ia como quem marcha solto, mas sem poder fugir, para o lugar em que se
levanta o patíbulo. Chegados à loja, o comerciante derramou a caixa de
brinquedos sobre o balcão.
-
Ficaram com dois – informou a criada -
entregando os oitocentos réis.
-
Dois não; três... – declarou o dono da
loja. Recontou os brinquedos e insistiu:
-
Falta um... Diga lá que falta um...
Voltamos. O coração batia-me como se quisesse vir à boca
tomar fôlego. Eu devia estar lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha
tia. E todos os olhos se voltaram, de pronto, para o menino órfão.
Não me recordo, hoje, que foi que
aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino carro pintado de vermelho, que
havia escondido atrás da porta. Apanhei, com certeza, a minha surra. Fui
apontado sem dúvida às crianças felizes e que tinham pai, como um menino mau, e
de costumes tristes. E o brinquedo foi restituído ao comerciante, com a
declaração de que havia caído sobre um tapete, no momento de abrir a caixa.
Foi esse, na minha vida de criança, o único brinquedo
bonito, e de loja que possuí. Posse criminosa e precária. Alegria misturada de
sofrimento, e que durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em
humilhação ostentosa. Festa de alma que se tornou agonia.
E que
tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo
roubado,
que eu escondo, que eu dissimulo
assustadamente no coração, e que, no entanto, descobrem e me tomam, quando
custaria tão pouco me deixarem com ele?
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