18 de ago. de 2013

O caminhão de mudança.

Presenciei nessa semana, mais precisamente no sábado, uma situação que havia muitos anos não via: uma mudança de pobre. No meu tempo a gente chamava simplesmente de muda. Passou um caminhão na minha rua e em cima uma mobília ordinária: geladeira, fogão, colchão, armários, todo aquele trem de coisas que a gente acumula durante anos e mais anos. Junto, muitos meninos e meninas, todos com idade entre sete e dez anos. Iam alegres, felizes, mais parecendo que iriam pra um circo.  
Então me lembrei de quando era criança e que nossa família ainda não tinha casa própria, o que era essa verdadeira revolução em nossas vidas, a mudança de casa. Porque só depois de adultos, com nossos irmãos, alguns já casados, outros andando pelo mundo e com o conhecimento do que seja a vida, nos damos conta de como é difícil pra um chefe de família essa troca periódica de abrigo. Mas na idade de menino é uma festa a mudança de casa. Começa pela lavagem daquela que vai ser a nova morada. Uma festa de muita água e sabão, rodo e vassoura. Afinal a gente precisa entrar em ambiente limpo. Faz bem.
Depois, chegado o dia, vem a hora de desmontar os móveis da sala e dos quartos, retirar o fogão e a geladeira de onde ficaram por anos e anos e que nos deram a sensação de serem pessoas sempre nos esperando naqueles lugares. E mais ainda, retirar as gavetas pra fora dos armários e ir descobrindo coisas que achávamos que estavam perdidas pra sempre. Porque são muitas e muitas as miudezas que perdemos, algumas coisas assim como um botão de camisa, uma caneta, um papel com endereço e telefone de um velho amigo, um chaveiro, uma medalha, uma fotografia.
As mudanças nos fazem encontrar ainda um relógio de pulso que ganhamos da madrinha na festa de aniversário, mas que não funciona mais, um broche, uma moeda. Essas coisas que nos fazem seguir em frente quando percebemos que nunca mais vamos achar e que pela vida a gente só encontra na hora da mudança. Mudar de casa, quem nunca passou por essa situação, realmente é uma experiência extraordinária. A retirada da parede dos santos da devoção de nossa mãe, as cadeiras, as panelas, o banco de pote, os copos, as coisas que podem quebrar se não forem levadas com cuidado.   
Tinha ainda a mesa de jantar, imensa, quase três metros, de madeira maciça, mandada fazer por meu avô ainda por ocasião do nascimento de um irmão de minha mãe. Isso há mais de oitenta anos. Tinha que acomodar também as plantas de jardim de minhas irmãs, que sempre foram tratadas com carinho por elas e por nada desse mundo as faria deixar na antiga casa. Depois era esperar o caminhão ou a carroça. E nós em cima daquele que nos levaria pra uma vida nova, ajudando os adultos, naquela algazarra tão própria e tão inocente.
Chegava finalmente o momento de, conferido o que havia em cima do caminhão ou da carroça e aquilo que não pode ser levado junto, tocar a vida pra frente. Agora a mudança necessitava ser concluída. Porque antes da mudança, seja de casa, próprio da nossa condição humana, civil ou política, ninguém pode adivinhar o futuro. Chegava a hora de, depois de acomodados todos os cacarecos em cima do caminhão ou da carroça, mudar de casa. Era um momento único. Estávamos deixando na casa antiga uma parte de nossas vidas, alegrias, tristezas, desilusões e algumas conquistas.
Mas depois de correr pela cidade e na direção do subúrbio estávamos finalmente chegando à casa nova. Era uma alegria e tanto. Nossa chegada, a surpresa demonstrada pelos vizinhos e agora nossa vontade de percorrer todos os cômodos, admirar os seus tamanhos, se havia janela pra o quintal, se havia quintal grande, se havia poço e o mais importante pra nós crianças, se existiam crianças iguais a nós na vizinhança. E nesse sábado fiquei a relembrar daquele tempo de menino.

Se por um lado as freqüentes mudanças de casa tornavam difícil de fixar colegas e amigos na vizinhança, por outro lado permitiram e ensinaram de que as mudanças são necessárias pra evolução do indivíduo, a dinâmica social do cidadão, as iniciativas poderosas que movimentam o mundo. Não existe progresso moral, político e social na acomodação. Assim deve ser a nossa vida política. E vendo aqueles meninos e meninas tão alegres, felizes pela expectativa de mudança passei a refletir sobre as nossas escolhas. Há sempre no tempo e em qualquer lugar uma esperança como essa que nos alimenta quando trocamos de casa. 

Pádua Marques
Jornalista e escritor

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