Presenciei nessa
semana, mais precisamente no sábado, uma situação que havia muitos anos não via:
uma mudança de pobre. No meu tempo a gente chamava simplesmente de muda. Passou um caminhão na minha rua e
em cima uma mobília ordinária: geladeira, fogão, colchão, armários, todo aquele
trem de coisas que a gente acumula durante anos e mais anos. Junto, muitos
meninos e meninas, todos com idade entre sete e dez anos. Iam alegres, felizes,
mais parecendo que iriam pra um circo.
Então me lembrei de
quando era criança e que nossa família ainda não tinha casa própria, o que era
essa verdadeira revolução em nossas vidas, a mudança de casa. Porque só depois
de adultos, com nossos irmãos, alguns já casados, outros andando pelo mundo e
com o conhecimento do que seja a vida, nos damos conta de como é difícil pra um
chefe de família essa troca periódica de abrigo. Mas na idade de menino é uma
festa a mudança de casa. Começa pela lavagem daquela que vai ser a nova morada.
Uma festa de muita água e sabão, rodo e vassoura. Afinal a gente precisa entrar
em ambiente limpo. Faz bem.
Depois, chegado o dia,
vem a hora de desmontar os móveis da sala e dos quartos, retirar o fogão e a
geladeira de onde ficaram por anos e anos e que nos deram a sensação de serem
pessoas sempre nos esperando naqueles lugares. E mais ainda, retirar as gavetas
pra fora dos armários e ir descobrindo coisas que achávamos que estavam
perdidas pra sempre. Porque são muitas e muitas as miudezas que perdemos,
algumas coisas assim como um botão de camisa, uma caneta, um papel com endereço
e telefone de um velho amigo, um chaveiro, uma medalha, uma fotografia.
As mudanças nos fazem
encontrar ainda um relógio de pulso que ganhamos da madrinha na festa de
aniversário, mas que não funciona mais, um broche, uma moeda. Essas coisas que
nos fazem seguir em frente quando percebemos que nunca mais vamos achar e que
pela vida a gente só encontra na hora da mudança. Mudar de casa, quem nunca
passou por essa situação, realmente é uma experiência extraordinária. A
retirada da parede dos santos da devoção de nossa mãe, as cadeiras, as panelas,
o banco de pote, os copos, as coisas que podem quebrar se não forem levadas com
cuidado.
Tinha ainda a mesa de
jantar, imensa, quase três metros, de madeira maciça, mandada fazer por meu avô
ainda por ocasião do nascimento de um irmão de minha mãe. Isso há mais de oitenta
anos. Tinha que acomodar também as plantas de jardim de minhas irmãs, que
sempre foram tratadas com carinho por elas e por nada desse mundo as faria
deixar na antiga casa. Depois era esperar o caminhão ou a carroça. E nós em
cima daquele que nos levaria pra uma vida nova, ajudando os adultos, naquela
algazarra tão própria e tão inocente.
Chegava finalmente o
momento de, conferido o que havia em cima do caminhão ou da carroça e aquilo
que não pode ser levado junto, tocar a vida pra frente. Agora a mudança
necessitava ser concluída. Porque antes da mudança, seja de casa, próprio da
nossa condição humana, civil ou política, ninguém pode adivinhar o futuro. Chegava
a hora de, depois de acomodados todos os cacarecos em cima do caminhão ou da
carroça, mudar de casa. Era um momento único. Estávamos deixando na casa antiga
uma parte de nossas vidas, alegrias, tristezas, desilusões e algumas
conquistas.
Mas depois de correr
pela cidade e na direção do subúrbio estávamos finalmente chegando à casa nova.
Era uma alegria e tanto. Nossa chegada, a surpresa demonstrada pelos vizinhos e
agora nossa vontade de percorrer todos os cômodos, admirar os seus tamanhos, se
havia janela pra o quintal, se havia quintal grande, se havia poço e o mais
importante pra nós crianças, se existiam crianças iguais a nós na vizinhança. E
nesse sábado fiquei a relembrar daquele tempo de menino.
Se por um lado as
freqüentes mudanças de casa tornavam difícil de fixar colegas e amigos na
vizinhança, por outro lado permitiram e ensinaram de que as mudanças são
necessárias pra evolução do indivíduo, a dinâmica social do cidadão, as
iniciativas poderosas que movimentam o mundo. Não existe progresso moral,
político e social na acomodação. Assim deve ser a nossa vida política. E vendo
aqueles meninos e meninas tão alegres, felizes pela expectativa de mudança
passei a refletir sobre as nossas escolhas. Há sempre no tempo e em qualquer
lugar uma esperança como essa que nos alimenta quando trocamos de casa.
Pádua Marques
Jornalista e escritor
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