Em 2000, escrevi um artigo com o título “bandido não tem classe social”. Naquela época fazia uma ilação entre o assassino Sandro do Nascimento e o senador Luiz Estevão. Sandro matou a professora Geísa Firmo Gonçalves ao vivo pela televisão numa tentativa frustrada de roubar trabalhadores em um ônibus coletivo no Rio de Janeiro. Já o senador Luiz Estevão roubou mais de 169 milhões de reais da construção do Fórum do Tribunal Regional do Trabalho, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, em parceria com o larápio Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, à época presidente daquele órgão da Justiça brasileira. Eu disse: presidente.
Mencionei que o Sandro tinha toda a trajetória de vida para ser bandido, conforme o conceito social dominante. E era isso mesmo, um bandido. Já o senador era um ilibado representante da República. Até fisicamente ambos tinham as características do que representavam, ainda segundo a visão predominante na sociedade. Eu concluía que ambos eram bandidos, mas que Luiz Estevão era mais bandido, caso existisse classificação. Com a sua roubalheira, retirava o dinheiro público da educação e da saúde que poderia ter salvado inúmeros Sandros da marginalidade, ainda na visão da grande maioria.
Há poucos dias, a relação do então senador Demóstenes Torres com o bicheiro Carlinhos Cachoeira e a devolução de vinte mil reais ao dono por um casal morador de rua assemelharam-se a Sandro Nascimento e Luiz Estevão.
Esse casal nem considerou a seu favor o errôneo álibi popular de que “o achado não é roubado”. Rejaniel Jesus dos Santos e sua mulher não tiveram dúvida em devolver o dinheiro. Seria uma atitude normal, não merecedora de destaque, não fossem a cultura nacional de levar vantagem em tudo e condição de moradores de rua, carentes de quaisquer bens materiais. Mas eles tinham aprendido com as mães de que não deveriam ficar com nada que não fosse seus. Citada expressamente por Rejaniel, a mãe o ensinara a ter caráter e dignidade com intensidade suficiente para que ele colocasse em prática mesmo em situação de extrema carência e após tantos anos. A dignidade deles também foi acompanhada pelos policiais. Diante de tão generalizada corrupção, seria fácil aos PMs simplesmente embolsarem o dinheiro e desmentirem os moradores de rua ou obrigarem-lhes a se calar. Fizeram o dever funcional exatamente como deveria ser a regra.
Para quem se apressar em dizer que Demóstenes Torres não é ladrão, coloco o conceito de roubo do Livro O Caçador de Pipas, ao afirmar que só existe um pecado: roubar. Os demais são variantes dele. Demóstenes roubou a confiança de milhares de pessoas que o colocaram no Senado. Além disso, ele roubou a crença das pessoas que acreditavam em suas palavras, bem como na ética que defendia tão enfaticamente.
Faltou o valor moral subjetivo que sobrou ao casal faltou a Demóstenes. Para o agora ex-senador o que interessava era mais dinheiro, sem importar a origem. Ele não tinha a fome que corroía os moradores de rua; ele não sentia o frio que contraía os músculos dos moradores de rua. Todo esse sofrimento fisiológico poderia ser aliviado com o dinheiro encontrado. Nem isso foi suficiente para suscitar alguma dúvida em Rejaniel e sua esposa. Um bom sono trazido pelo aconchego de um cobertor quente e a possibilidade de obter comida para suprir a fome nem abalaram sua consciência. Provaram que a consciência tranquila e a certeza do dever cumprido são valores maiores do que suas necessidades físicas. Mas isso só serve para quem aprendeu o que lhe foi ensinado. Não se sabe se o senador recebeu esse ensinamento em casa, mas se houve, com certeza não assimilou. Só não resta dúvida de que Rejaniel e sua esposa são verdadeiros cidadãos. E que cidadãos!
“Toda criança de rua tem um responsável que a abandonou”
Pedro Cardoso da Costa - Interlagos/SP
Bacharel em Direito
Fonte: Acesso 343