Prof. Dr. Geraldo Filho (UFDPar - 30/10/2020)
Ou por ingenuidade ou por má fé dos defensores de utopias as sociedades contemporâneas vivem sobressaltadas por debates políticos desgastantes em torno de abstrações que pouca relação têm com a realidade cotidiana dos cidadãos.
Por ingenuidade, os que acreditam no sonho de sociedades terrenas perfeitas, sem crimes, sem injustiças ou sem desigualdades (uma parte movida por ideais religiosos, outra parte movida por ideais seculares), por desconhecimento da crueza da natureza humana falível (que pulsa dentro deles, o que prova que sequer se autoconhecem... imaginem o mundo!) desperdiçam a vida arquitetando projetos políticos com o objetivo de, segundo gostam de dizer, pasmem, “transformar este mundo”!
Por má fé, os que disseminam o sonho de sociedades terrenas perfeitas sabem que ele é irrealizável, no entanto, manipulam esta ilusão, que normalmente motiva espíritos juvenis (pois por um condicionante neurobiológico dessa fase da vida até, por volta dos 30 anos, têm os cérebros em ebulição, inquietos e desconfortáveis... logo influenciáveis!), em favor de interesses políticos individuais ou de um pequeno grupo, cujas frustrações com a existência alimentam egos desmesurados de egoísmo e ambição, que creem piamente que merecem ser mais do que são e que por isso a sociedade lhes deve!
O acervo da história contemporânea encontra nas estantes as cosequencias nefastas motivadas pelos dois estados de espírito, que produziram terríveis tiranias criminosas, a começar por 1789 com a Revolução Francesa (matriz do que se conhece hoje como “ódio do bem”, na verdade expressão do mal interior de indivíduos recalcados e infelizes!) e depois pelas sucessivas reencarnações: o comunismo soviético (1917) e chinês (1949); e o nazismo alemão (1933); para ficar com os mais conhecidos exemplos. Em comum e ironicamente, as palavras de ordem dessas experiências sociais fracassadas (porém terrivelmente sanguinárias para milhões de inocentes!) se referiam à reparação das injustiças e das desigualdades!
Infelizmente, o que assusta, é a incapacidade dos humanos de aprenderem com a experiência empírica (factual) do laboratório da história, o que me faz duvidar das possibilidades de aperfeiçoamento das sociedades em geral, o que implica que muitas se autodestruirão e colocarão em perigo as poucas com um mínimo de consciência da realidade!
Veja-se, por exemplo, o caso da palavra “desigualdade” e o significado socioeconômico a que ela remete. O seu conteúdo, que corresponde e reflete a existência real da natureza e da sociedade, se tornou repugnante e indesejável, em favor da palavra antônima, a “igualdade”, que, por sua vez, é uma mera abstração sem significado concreto, portanto vazia de conteúdo, pois não encontra correspondência e nem reflete a natureza real das coisas e tampouco as relações humanas em sociedade.
Sob a perspectiva da teologia cristã, composta pelo Velho e o Novo Testamento, a igualdade só é factível perante o plano espiritual divino, pelo qual aos olhos de Deus os humanos são iguais porque todos foram irmanados como filhos do Criador.
No entanto, deve se refletir que ao dotar o homem de livre-arbítrio, ao lhe facultar o direito de fazer opções sobre os destinos da própria vida (por mais difíceis que sejam as circunstancias que a determinam, como a pobreza ou uma doença terminal!), Deus está aquiescendo com o fato inescapável de que nem todos terão sucesso na árdua maratona à procura da salvação da alma, como decorrência das decisões acertadas ou erradas ao longo do caminho terreno, do percurso biográfico de cada um! Portanto, acertos e erros necessariamente diferenciam os indivíduos submetidos à régua avaliadora das virtudes e pecados.
Talvez por isso, de acordo com os textos sagrados, Jesus tenha insistido que na Casa do Senhor existem muitas moradas, formulando assim uma alegoria poderosa que abrigava todas as diferenças individuais e entre as nações, as igualando no plano espiritual.
Com efeito, a concepção de um Criador universal (e não a de deuses nacionais, de um único povo, como era a tradição até o surgimento do cristianismo), constituiu força moral única que ao elevar o status do homem de reles mortal a um ser espiritual, portador de uma alma, também se tornou força civilizadora, por mais estranhos e reprováveis meios ela tenha se exercido e desenvolvido pela história das sociedades, seja mediante conquistas de povos ou destruição iconoclasta de tradições religiosas politeístas milenares.
É certo, porém, que o freio moral imposto às paixões dos instintos, que os princípios da convivência cristã inspirou, guiado pela esperança de vida depois da morte (feito jamais conseguido pelas mitologias da Antiguidade e nem pelas mais sofisticadas escolas filosóficas gregas) amansou e moderou os espíritos pelos séculos da Era Cristã e construiu a civilização ocidental, que praticamente se espalhou por todo o planeta, com exceção da forte resistência do mundo muçulmano (que provavelmente por isso padece com a constante instabilidade conflituosa, tanto internamente quanto com o mundo global, se sustentando pelo fundamentalismo dogmático da fé e pelo terror político aos quais submetem sua população!).
Portanto, o freio moral dos princípios cristãos deve ser o “métron” (parâmetro) utilizado para rechaçar projetos de sociedade baseados na fantasia da igualdade absoluta entre os cidadãos, simplesmente porque são inalcançáveis no plano da existência temporal.
Smith e Burke viveram essa experiência! Homens do século XVIII, chamado “século das luzes” (O Iluminismo), Adam Smith (1723-1790) e Edmund Burke (1729-1797), um escocês o outro irlandês, súditos do Império Britânico, viram nascer na França o radicalismo político jacobino que em nome da conquista da igualdade era visceralmente ateu (anticristão) e republicano (antimonarquista), dois pilares basilares do denominado Antigo Regime, cujas instituições sociais, usos e costumes fincavam raízes no passado milenar da Antiguidade.
Ambos apontaram que processos de transformação social referenciados por idealismos abstratos estavam destinados ao desastre socioeconômico e ao sofrimento das guerras, como efetivamente ocorreu com as consequências imediatas da Revolução Francesa e os seus efeitos sobre experiências revolucionárias posteriores pelos séculos seguintes.
Assim, como um antídoto contra vendilhões de utopias revolucionárias (que hoje infestam os sistemas políticos e as universidades), no livro “A Teoria dos Sentimentos Morais” (1759), Smith estabeleceu a distinção entre o “homem de espírito público” e o “homem do sistema”. Segundo ele, o primeiro, o “homem de espírito público”, é movido pelo sentimento de humanidade e benevolência, cultivando condutas prudentes e realistas, sem jamais esquecer as circunstancias e os eventuais sofrimentos a terceiros resultantes de suas ações políticas. Por outro lado, o segundo, o “homem do sistema”, está encantado pela beleza do seu projeto teórico prefeito, não hesitando em cumpri-lo, sem considerar sequer por um instante o preço material e humano que suas ações políticas destrutivas podem acarretar.
Por sua vez, Burke em sua “Correspondência com Charles-Jean-François Depont” (1789) e em “”Reflexões sobre a Revolução na França” (1790), chamou a atenção que em França os revolucionários procuravam uma “perfeição teórica” sem atentar sequer por um momento para o problema de tratar com a inultrapassável imperfeição humana, e interrogou: serão os homens (os revolucionários) capazes de realizar na Terra o que espíritos mais humildes só esperam encontrar no Céu? A resposta foi negativa! De acordo com ele, os homens, influenciados por elucubrações de filósofos sobre os alegados “direitos do homem”, lançaram-se numa fúria destrutiva rumo a um fim perfeito; essa fúria, longe de preservar e reformar a estrutura institucional secular do reino implicou na destruição das instituições, dos princípios e dos valores que faziam parte do patrimônio político e moral da França. A violência revolucionaria era o resultado inevitável de quem sempre procura e promete a boa ordem para quando a “sociedade futura” chegar!
Por outro lado, sob a perspectiva da biologia evolutiva, sobretudo da evolução da espécie sapiens, falar sobre igualdade não tem sentido algum! O patrimônio genético que os humanos contemporâneos herdaram é o resultado de 300 mil anos de intenso caldeamento de genes, promovido pelo intercambio do comercio ou da guerra, que colocou em contato populações diversas, cada qual com o conjunto genomico adaptado aos diferentes biomas do planeta.
Ora, nessa perspectiva a diferença é a regra e a igualdade a exceção, se é que existe! No extremo, até gêmeos univitelinos (idênticos) são distintos, como os estudos recentes da disciplina epigenética comprovam, ao indicar que gêmeos sofrem impactos diferenciados na sua estrutura genética (e consequentemente na expressão dos seus genes por meio do comportamento) como consequência de experiências sociais ou afetivas no ambiente.
Com efeito, pode se estender para a herança genética herdada pelos contemporâneos o mesmo raciocino reverente que Burke usou nas “Reflexões sobre a Revolução na França”, ao contemplar o legado da tradição civilizatória ocidental, que remonta à imaginação filosófica, política e estética greco-romana e aos princípios morais universais cristãos orientados por uma teologia de esperança da vida após a morte. Segundo ele, a possibilidade de convivência pacifica e produtiva de indivíduos em sociedade passa pelo reconhecimento de um pacto atemporal entre as gerações presentes com as gerações passadas (que viveram, lutaram e morreram para construir o mundo que se conhece, pacto que sempre pode e deve ser aperfeiçoado por meio de reformas prudentes) e com as gerações futuras (que ao vir ao mundo sem o direito de escolher, merecem uma herança que lhes permita condições satisfatórias para a continuidade da saga humana).
A perspectiva heurística científica (conhecimento teórico-empírico) da biologia evolutiva reforça o parâmetro moral fornecido pela perspectiva heurística teológica (conhecimento especulativo) no combate aos sofistas pregadores de abstrações, como a igualdade em geral, que encobrem egos pervertidos pela frustração individual que explodem em egoísmo e ambição de projetos revolucionários que desprezam a experiência das tradições (usos e costumes) e do conhecimento humano acumulado pelas gerações passadas, tomando como partida promessas de um mundo utópico, que como tal, nunca existiu!
Russell Kirk (1918-1994), grande historiador americano do século XX, dedicou seu principal livro a divulgar as ideias de Edmund Burke, que somou à sua sólida formação intelectual a experiência de décadas como deputado da Câmara dos Comuns (junto ao Parlamento Britânico) para construir os princípios da teoria conservadora, que deu origem ao primeiro partido moderno, de organização nacional como se conhece hoje, o Partido Conservador Inglês (os tories), que será a referência para a formação de todos os partidos da mesma tendência ou de tendências diferentes que surgiram depois pelo mundo. O livro se chamou “Edmund Burke: redescobrindo um gênio” (1957).
No livro, Kirk listou seis princípios teóricos nos quais se apoia a teoria conservadora de Burke, e que qualquer um que se autodenomine conservador obrigatoriamente tem de conhecer. Cada um comporta comentários mais elaborados que não cabem nos limites desse artigo. Porém, para encerrar, citarei dois, que dizem respeito diretamente às perspectivas heurísticas aqui abordadas:
1) Há uma crença na intenção divina que rege a sociedade, bem como as consciências individuais (eu chamo a isso de “o mistério da fè”, essencial para que os indivíduos exerçam diariamente o freio moral sobre os desejos inconfessáveis!). Assim, segundo ele, os problemas políticos são também, no fundo, problemas religiosos (se referindo à preocupação com o destino do próximo, não a questões inerentes aos cleros das igrejas) e morais.
2) Para se viver numa sociedade civilizada há a necessidade de ordens e classes (o que na prática é o que acontece na complexidade da divisão social do trabalho estabelecida pelas grandes sociedades industriais, garantindo a coesão social, estudada por Émile Durkheim no livro “Da Divisão Social do Trabalho”, de 1893). Assim, segundo ele, a única e verdadeira igualdade é a igualdade moral... (eu acrescentaria, com permissão à memória do grande Edmund Burke... o resto são tolices fantasiosas de egos recalcados e infelizes!).
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