29 de mai. de 2020

China: considerações sobre uma sociedade original! (Parte – 2)

Prof. Dr. Geraldo Filho (UFDPar – 28/05/2020)

 

No ocaso de Mao, consumido pela doença que lhe tirou a voz e debilitou os movimentos, Chou En-Lai e Deng Xiaoping começaram a arquitetar mudanças que contrastavam as políticas dele, orientando a China para outra direção!

 

Consciente da situação de subdesenvolvimento econômico e fragilidade militar na qual a China se encontrava, desde o século XIX, quando o império se fechou para a revolução industrial que se espalhava a partir da Inglaterra, Chou En-Lai traçou o caminho estratégico para consolidar a soberania e a independência da China após 1949, priorizando a adaptação pragmática a cada contexto geopolítico que se configurasse – seja na sua proximidade regional geográfica seja no mundo, dominado então por duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética – deixando em segundo plano a ideologia radical de esquerda simbolizada por Mao, retrógrada em termos de desenvolvimento. Três momentos decisivos ilustram o percurso estratégico imaginado por Chou que culminou na China do século XXI.

 

Necessitando de apoio militar logo após a Revolução em 1949 a China se aliou a URSS, causando pânico no mundo da década de 50, com o pacto entre os dois gigantes comunistas. O primeiro com um ativo militar precioso e sem temor de usá-lo, a população (600 milhões há época); o segundo com um exército formidável e poderio nuclear.

 

Nos anos 60, a China começou a se afastar da URSS ao perceber que se posicionaria melhor no xadrez geopolítico da Guerra Fria se mantivesse equidistância relativa das duas superpotências rivais, buscando neutralizar qualquer risco de conflito na sua vizinhança, sobretudo na extensa fronteira com a URSS, sempre uma ameaça potencial de invasão, como acontecera no passado imperial (século XIX), quando o império czarista arrancou nacos generosos do território chinês.

 

Finalmente, nos anos 70, observando o fracasso econômico das economias dos países socialistas/comunistas, Chou preparou a aproximação definitiva com o mundo ocidental – ao abandonar sem constrangimento a retórica esquerdista que tanto fez sucesso entre os países subdesenvolvidos na década anterior – tecendo acordos políticos e econômicos com os Estados Unidos e com o grande aliado americano no oriente, o Japão, isolando assim a União Soviética. Começava a se desenhar o cenário para a grande virada que ocorreu depois de 1976.

 

Chou, que era apontado como o sucessor natural de Mao, morreu poucos meses antes dele, em 1976, mas teve tempo de elaborar a estratégia de desenvolvimento econômico e social conhecida como “As Quatro Grandes Modernizações”, que foi encampada e executada pelo outro excepcionalmente competente mandarim Deng Xiaoping, ao ascender ao comando da China, após aniquilar com rapidez a ala radical seguidora de Mao liderada pela viúva Jiang Qing (o Bando dos Quatro) a encarcerando e acabando em definitivo com a malfadada Revolução Cultural sob sua orientação.

 

O plano consistia em modernizar a agricultura, a indústria, ciência e tecnologia e as forças armadas. Com carência de recursos financeiros porém contando com a população, não mais como um ativo militar mas sim como um enorme mercado de trabalho a baixo custo (nada de leis trabalhistas ou previdência pública universais) e de consumo, a economia progressivamente se abriu para as empresas estrangeiras e os investimentos capitalistas. Ao tempo em que o governo enviou milhares de jovens para as melhores universidades ocidentais, com foco em desenvolvimento científico e tecnológico, preparando as gerações que conduziriam os destinos do país nas décadas seguintes, o transformando de uma sociedade agrária numa potência produtora de tecnologia de ponta em todos os setores (as universidades chinesas não ensinam mais teoria marxista para os estudantes, como no Brasil!), promovendo o reencontro da China moderna com o glorioso passado imperial, cujo destino manifesto, relembro, inerente ao “Mandato Celestial” outorgado ao imperador, era governar o mundo!

 

Duas frases são reveladoras do pensamento estratégico de Deng na condução da China pós Mao, que deixam transparecer o pragmatismo para perseguir objetivos! A fim de justificar as modernizações inspiradas por Chou En-Lai, que implicaram na introdução de reformas capitalistas na economia como um todo – acabando com a coletivização e estatização do campo e estimulando “joint ventures” (parcerias) com empresas ocidentais que quisessem se estabelecer no país atrás de um imenso mercado de trabalho barato, ávido por consumir (um sacrilégio para Mao!) – Deng afirmou: “Enriquecer é glorioso!”

 

Contra aqueles que opuseram resistência às reformas modernizadoras, com a acusação de “revisionismo, traidor dos princípios comunistas” representados por Mao, Deng Xiaoping, com argumentação pragmática que ficou famosa em defesa da abertura da economia para o mercado, proferiu a frase: “Para caçar o rato (a necessidade e a fome do povo chinês) não interessa a cor do gato (se comunista ou capitalista), o que importa é que ele cace o rato (seja eficiente e eficaz)!”

 

Sobre os escombros dos loucos anos comunistas de Mao, Chou En-Lai e Deng Xiaoping construíram a China como se conhece hoje. O Partido Comunista da China mantém esse nome porque foi com ele que se organizou a estrutura de poder governamental que conduziu em poucas décadas uma sociedade com população atual de 1,4 bilhões de indivíduos ao sucesso. Para o pragmatismo chinês o rótulo pouco importa! É parecido com o turista que vai ao México e compra a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, vendida com reverência como artesanato local, quando na verdade foi produzida em escala na China mas... e daí?... o que interessa ao artesão foi que ele vendeu e ficou feliz e o que importa para o turista é que ele vai voltar para casa satisfeito com uma lembrança da viagem!

 

Esta estrutura de poder governamental é uma ditadura?! Utilizado os conceitos sobre formas de governo que remontam no mundo ocidental à Grécia Clássica e aos escritos de Platão e Aristóteles, que forjaram a sociologia política que se conhece, sim, é uma ditadura! Porém, com características singulares e que para compreendê-la é necessário mais uma vez considerar o contexto da história chinesa e do ocidente.

 

Em geral ditaduras seculares são personalistas, girando em torno de um líder, semeando em regra grande instabilidade quando ocorrem as sucessões, favorecendo que sejam feitas no âmbito da família (podendo gerar dinastias) ou entre os auxiliares próximos ao ditador (insuflando conflitos e traições). No entanto, a estrutura de governo chinesa é uma ditadura secular legitimada por milênios de imperadores absolutistas consagrados pelo “Mandato Celestial”, que na prática nada mais era do que um ditador, cercado por uma excelente casta de burocratas profissionais (mandarins), admitidos em concursos públicos (eles que inventaram!), com o objetivo de governar com o imperador.

 

Esta é a elite profissional que dirige a China com o nome de PCC, e se há uma coisa que ela odeia se chama instabilidade política! Para ser justo com a tradição dessa casta burocrática o período de maior dificuldade enfrentada por ela começou em 1839 – com a 1ª Guerra do Ópio, que durou até 1842, encerrada com o Tratado de Nanquim, pelo qual a Inglaterra adquiriu exclusividade comercial no porto de Cantão e recebeu Hong Kong – e terminou, depois dos vários acontecimentos desastrosos para o país século XX adentro (queda do império, invasões europeias, guerras com Rússia e Japão, a revolução comunista), em 1976, 137 anos depois!

 

Mas se eram tão profissionais como pode ter isso acontecido?! Para entender é preciso introduzir outra dimensão na análise que é erroneamente subestimada na explicação de eventos históricos com impacto nos destinos das sociedades, a subjetiva, vulnerável a traços de personalidade que modelam comportamentos e, claro, influem na tomada de decisões! Não foi falta de alerta de membros do mandarinato, que anteviram o que estava acontecendo no final do século XVIII e inicio do XIX na Europa, mas suas vozes foram reprimidas pela soberba e vaidade da corte imperial, que imaginava as defesas da China inexpugnáveis ao ataque dos bárbaros, pois pelo ordenamento divino das coisas, estes, inferiores como eram, lhes deviam tributos e obediência. Adaptando um adágio popular do futebol brasileiro, inspirado no grande Garrincha: Para que tamanha ingenuidade fosse verdade, só faltou combinar com os ingleses; os demais europeus; os russos e os japoneses; além dos loucos comunistas que inspirados em dois teóricos alemães buscaram implodir séculos de história!

 

Chou e Deng foram os herdeiros distantes daquelas vozes destoantes que no inicio do século XIX previram a necessidade de adaptação da China aos novos tempos da revolução industrial, que demandavam por reformas que na verdade só vieram a ser realizadas a partir de 1976. O intervalo de 137 anos, para a história chinesa, deverá ser considerado como um “grande freio de arrumação”, cujas consequências foram terríveis para a população (só para o período comunista se calcula, por baixo, em 70 milhões). Por outro lado, de 1976 para frente as reformas empreendidas promoveram o reencontro com o passado, o que justifica sua posição de 2ª potencia mundial na contemporaneidade.

 

Ao contrário de se condenar a estrutura de poder chinesa como ditadura e classificá-la como comunista, de acordo com os conceitos e critérios da sociologia política desenvolvida no ocidente, talvez seja mais coerente e cientificamente acertado avaliá-la como uma forma de governo que reflete e reforça as características daquela sociedade, que milenarmente se construiu e desenvolveu hierarquicamente organizada. Como na Grécia Clássica (5 séculos antes de Cristo) e depois na Judéia e Roma, na China não surgiram escolas filosóficas nem religiões interrogando sobre ética e liberdade pessoal ou sobre a relação entre o indivíduo e o sentido de ser no mundo, ou sobre o destino da alma! Com efeito, estas noções tão caras e valorizadas pelos ocidentais – formados nas tradições religiosa judaica-cristã e filosófica e política greco-romana, que levaram às sociedades abertas (indivíduos livres) e democráticas – não fizeram parte de história chinesa em particular e nem dos povos orientais em geral, da modelagem da sua estrutura mental (consciência coletiva).

 

Ou seja, a forma de governo como se conhece na China, em termos evolutivos, parece ter sido a mais adequada para aqueles grupos humanos que habitam por milhares de anos as regiões orientais, por meio da qual garantiram paz e a estabilidade por longos períodos temporais. Talvez por isto seja difícil identificar sociedades com largas experiências democráticas na área, com exceção muito recente do Japão e da Coréia do Sul (ambas com tradição de hierarquia social muito rígida e passado imperial semelhante ao chinês).

 

Para efeito de comparação, o que serve para confirmar a originalidade chinesa, por que a Rússia, pioneira na experiência socialista, apesar da similaridade com a China em economia agrária e séculos de herança imperial, implodiu? Não conseguindo reproduzir o caminho chinês de manutenção de uma estrutura de poder forte – administrada por uma burocracia profissional – conjugada com uma economia de mercado ao tentar copiá-lo, com a “perestroika” (reestruturação econômica) e a “glasnost” (transparência política)?! Possivelmente porque o DNA da sociedade russa é fortemente composto pela tradição judaica-cristã, simbolizada pela Igreja Cristã Ortodoxa (o que a China absolutamente desconhece); e porque a elite política e intelectual, seja da aristocracia czarista ou dos líderes comunistas, foi determinantemente influenciada pela porção ocidental do império (a nobreza imperial tinha vínculos familiares e culturais estreitos com a nobreza germânica, francesa e inglesa; e os revolucionários importaram suas ideias dos teóricos radicais franceses e socialistas/comunistas alemães).

 

O germe da contestação, estimulado palas noções de liberdade de pensar e se expressar e do direito de decidir a vida estavam presentes na sociedade russa mesmo quando ela se tornou soviética, sob o comando dos socialistas/comunistas, o que obrigou o aparato de repressão da URSS ser tão violento quanto, porém mais sofisticado, do que o chinês, coibindo dissidentes mas seduzindo simpatizantes pelo mundo, mediante a ação de infiltração na sociedade civil pelos diversos partidos comunistas, inclusive os do Brasil. Mesmo assim, a Rússia, dado que nunca foi uma sociedade democrática – secularmente seu povo só conhece estruturas verticais de comando, com pouquíssima participação popular – conseguiu, com Vladimir Putin, desde 2000, investido no papel de czar secular, retomar a importância na geopolítica mundial, não pela pujança da economia, mas pela força do arsenal militar e nuclear.

 

Para concluir, penso que a China mostra os dentes por meio da economia e do poderio militar para dar um recado que sempre quis dar durante milhares de anos de história: não interfiram com os caminhos escolhidos pela sociedade chinesa, ora de fechamento sobre si mesma ora de abertura para o mundo, pois a China, em contrapartida, não interferirá nos destinos de nenhum país. Com efeito, a China não quer levar direitos humanos e nem democracia para os povos que comercializam com ela, o que interessa são os negócios, como eles vivem é um problema de autodeterminação deles!

 

Na concepção geopolítica chinesa, quando europeus e americanos procuram exportar valores religiosos, filosóficos e políticos para outras sociedades criam mais situações de tensão e instabilidade do que de estabilidade e progresso. Observando o permanente conflito do ocidente com países muçulmanos (Irã, Iraque, Afeganistão, Palestinos), fico cada vez mais convicto da correção da posição chinesa.

 

A política externa dos Estados Unidos com Donald Trump e os republicanos segue na direção da análise desenvolvida aqui, o que lhe custa a acusação de “isolacionista” por parte dos democratas. Na verdade ela traduz o reconhecimento pragmático de que povos de passado imperial ou tribal ainda muito enraizados (principalmente quando os de cultura tribal têm forte componente religioso na sua trajetória) não devem ser forçados à adoção da cultura ocidental naturalmente cosmopolita, se ela acontecer que ocorra naturalmente, como uma consequência inevitável da integração dos mercados! Deng Xiaoping chamava a isto de “evolução progressiva”, ao alertar para o surgimento de comportamentos ocidentais na sociedade chinesa, o que mais uma vez é um brinde à sua perspicácia!

 

O Brasil, considerando as peculiaridades próprias da sua formação como sociedade e de suas instituições poderia extrair lições da história política, administrativa e diplomática da China. Em relação à política, a forma de governo republicana expurgada da tradição monárquica simbolizada pelo executivo forte, como poder moderador, tornou-se uma instituição permanentemente geradora de crises e instabilidade, haja vista a própria história republicana após 1889, caracterizada por várias constituições e uma quantidade exorbitante de leis, que como resultado tornaram o país disfuncional, dificultando o crescimento e o desenvolvimento.  

 

Em relação à administração, a burocracia estatal em todos os níveis deveria ser radicalmente profissional, o que significa a proibição rigorosa de militância política partidária dos componentes e das associações de representação, afinal os salários são financiados pelos cidadãos pagadores de impostos, que têm as mais diferentes preferências ideológicas. Além disso, uma administração profissional do Estado, distribuída pelos três poderes, focada na eficiência e eficácia, ajudaria a filtrar o perigo da ascensão de aventureiros políticos desqualificados, fomentadores de incerteza e desordem. Com o aparato burocrático estatal chinês, montado por Chou e Deng, dificilmente Mao poderia fazer carreira política na sociedade chinesa; o mesmo raciocínio se aplica, caso o modelo fosse adaptado ao Brasil, para os casos de Lula e Dilma, por exemplo.

 

Em relação à política externa, se deve exercitar ostensivamente o pragmatismo, visando os interesses do Brasil no médio e longo prazo, o que significa aprofundar as alianças com os parceiros cujas tradições culturais são historicamente compartilhadas, ao mesmo tempo em que se faz negócio com todos os países, independente das configurações socais e políticas, afinal, como disse um grande autor americano: “Em busca da paz e da estabilidade, muito mais do que a diplomacia profissional e das armas, o comercio é, por excelência, a diplomacia de Deus”.

 

 

 

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