3 de nov. de 2011

Faz parte do livro de Memórias de Humberto de Campos. "O BRINQUEDO ROUBADO"

Cajueiro de Humberto de Campus em Parnaíba 
A nossa mudança de Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para Parnaíba, onde éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo, na formação do meu caráter. Eu reconhecia intimamente a inferioridade da minha condição. No meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do necessário e do supérfluo, doía-me o tratamento que me davam, quando era encontrado sozinho, e que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu era um menino feio, retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia alheia. E como não havia um espírito estranho e inteligente que procuras se estabelecer o contacto do meu coração com o mundo, ia se formando na minh’alma um surdo sentimento de revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as desigualdades estabelecidas pelo Destino.

Foi a noção dessa inferioridade clamorosa que me levou à prática do primeiro ato reprovável, em que o castigo severo contribuiu, apenas, para fixar no meu espírito a extensão daquela injustiça.

Eu fui um menino que não possuía, parece, jamais, um brinquedo delicado. É provável que meu pai, nas suas viagens ao Maranhão, me levasse alguma lembrança desse gênero. Mas eu perdi aos seis anos, e, depois órfão, minha mãe não podia dispender qualquer quantia, mesmo insignificante, com uma gaita, um boneco ou um pandeiro. No meu aniversário, ou no da minha irmã, seu brinde consistia em servir o nosso almoço fora da mesa, improvisando um “banquete” sobre um caixão de querosene, coberto com uma toalha de rosto. Nesse dia, comíamos em pires, elevados à condição de pratos da nossa festa. Certa vez houve, mesmo, um pouco de “vinho”, preparado com água, vinagre e açúcar, e que enchia um pequeno vidro, dos de Xarope de Cambará. Minhas distrações de infância, desde que chegamos a Parnaíba, limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha pernas e chifres para a formação de boiadas; à fabricação de arapucas para apanhar as rolas mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel, que eram o maior encanto das minhas tardes vadias, ás vezes, quando encontrava um lápis ao alcance da mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em cada tijolo do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas árvores à frente ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à porta. Houve, também, uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados se voltaram para os carretéis de linha. Cheguei a possuir cerca de duzentos, brancos uns, pretos outros. Constituíam dois exércitos comandados pelos generais, que eram os carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os militarmente para a batalha, e, com um limão, derrubava-os a tiro de artilharia, ora de um lado, ora de outro. Entre esses carretéis alguns havia que eram verdadeiros heróis: entravam em seis ou sete combates seguidamente, e não caíam. O limão respeitava-os como as granadas a Bonaparte. Se há um Cornélio Nepote no mundo dos carretéis vazios, alguns dos meus devem ter o seu nome na história dos grandes capitães. Terminadas, porém, as lutas a que os submetia, eu enfiava os meus dois exércitos em um barbante e pendurava-os nuns pregos do alpendre. Fazia, em suma, com os meus soldados, o que fazem com os seus os políticos, depois de servidos... Todos meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de menino pobre. Nenhum vinha da loja. 

É de imaginar, pois, o alvoroço íntimo que me assaltou quando, um dia, tive sob os olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia ter oito anos e estava, com minha mãe, em visita, na casa de um dos meus tios, quando, uma tarde, mandaram pedir no estabelecimento comercial de Pires Almeida & Cia, que ficava próximo, alguns brinquedos, para escolher. Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias deles, e todas as crianças afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A criada voltou com a encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa maravilhosa. Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios — um sortimento capaz de revolucionar Liliput. Custava 400 réis cada um.

Olhos ávidos, coração batendo forte, eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as mãos venturosas da minha prima e do meu primo pequeno. Ninguém se lembrou de mim. Ninguém se apercebeu da minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu que ali estava um menino órfão, mas infeliz que as outras crianças, e que, por isso mesmo, precisava, mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos os dois brinquedos, fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira da sala de jantar, enquanto ia no interior da casa.

Quando ela saiu para ir à loja com a sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se eram os outros brinquedos que me atraíam ou se era o remorso, a consciência de culpa, que me arrastava. Ia como um autômato. Ia como quem marcha solto, mas sem poder fugir, para o lugar em que se levanta o patíbulo. Chegados á loja, o comerciante derramou a caixa de brinquedos sobre o balcão. 

— Ficaram com dois, — informou a criada, entregando os oitocentos réis. 

— Dois, não; três... — declarou o dono da loja.

Recontou os brinquedos e insistiu:

— Falta um... Diga lá que falta um...

Voltamos. O coração batia-me como se quisesse vir à boca tomar fôlego. Eu devia estar lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha tia. E todos os olhos se voltaram, de pronto, para o menino órfão.

Não me recordo, hoje, que foi o que aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino carro pintado de vermelho, que havia escondido atrás de uma porta. Apanhei, com certeza, a minha surra. Fui apontado, sem dúvida, ás crianças felizes e que tinham pai, como um menino mau, e de costumes tristes. E o brinquedo foi restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre um tapete, no momento de abrir a caixa.

Foi esse, na minha vida de criança, o único brinquedo bonito, e de loja, que possuía. Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentuosa. Festa de alma que se tornou agonia. 

E que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadamente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele."


Por Marçal Paixão - BB Aposentado
Edição Blog do Pessoa 

8 comentários:

  1. Belíssimo texto. A escrita, a lógica e o sequenciamento de ideias fascinam o leitor.

    Forma e estrutura literária a parte, o texto remete a uma reflexão profunda.
    O quanto que a necessidade e a dificuldade pode resultar no engrandecimento do espírito, convertendo em aprendizagem e em instrumento de potencialização de habilidades que, talvez, sem o devido estímulo ficariam escondidas ou até mesmo desprezada.

    Transcrevo nas linhas abaixo um trecho que está no cd CASA DE BRINQUEDOS:

    "...O brinquedo, o que é o brinquedo?
    Duas ou três partes de plástico, de lata,
    Uma matéria fria, sem alegria, sem história.
    Mas não é isso, não é filho?
    Porque você lhe dá vida
    Você faz ele voar, viajar,vamos filho, sabe que lugar é esse?
    É um lugar de sonhos.
    Uma casa de brinquedos.
    Vamos entrar?"

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  2. Belíssimo texto, sugiro ao senhor Marçal Paixão que escreva mais vezes, ou crie um blog próprio para que possamos acompanhar seus escritos.
    Parabéns também ao blogueiro pela postagem desse ótimo trabalho.

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  3. onde posso conseguir uma copia deste texto?

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  4. Emocionante... palavras que conseguem se transformar em cenário de filme, em viagem. Parabéns ao autor e ao blogueiro por este presente.

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  5. Um texto que é puro sentimento, caminho é cartamente agora quem sabe, saudade ?
    Otimo,otimo, parabens.

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  6. Será que eu entendi errado, ou foram as outras pessoas que estão comentando que entederam???????

    Pelo que percebi quem escreveu o texto foi o escritor Humberto de Campos e não o Sr. Marçal Paixão. Este, apenas transcreveu o texto aqui. Texto lindíssimo por sinal.

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  7. está certo.O texto é de humberto de campos.

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